domingo, 20 de setembro de 2015



                                                           No Ateliê (trecho inicial)
                                                                                Andrea Campos


Às vezes é preciso visitar as estrelas e tocá-las, mesmo sem vê-las. Era noite e o corpo  dele atirou-se ávido por sobre a porta, como se fosse abrir o futuro. Ela se pôs frente a seus olhos e olhava-o com a boca. Adentraram o ateliê onde ele iria pintá-la. Ela recostou-se a um divã, a camisa de renda semiaberta, gotículas de suor cintilando entre os seios hirtos. “Não se mexa”, ele disse. Mas havia algo que nela bulia incessante, por sobre e por dentre a pele e resfolegava e piscava. Soltou um suspiro. Ele sério, compenetrado, usava camisa e shorts de algodão. Os olhos dela derraparam por sobre todo o torso dele e, de repente, capotaram... "Não, ele não me é indiferente". (...)

Do livro de Contos: “O mais profundo é a pele”. Inédito




                                                     
                                                             


                                                         Na Baia (trecho inicial)
                                                                         Andrea Campos

“Eu não a amo, mas a desejo”, era o seu refrão perpetuado no tempo. E era assim que a desejava com as extremidades do corpo em riste e os punhos do coração cerrados...

Era sempre em frente à baia que ela passava cavalgando enquanto ele selava os cavalos. Há quatro anos cuidava dos cavalos da fazenda do pai dela onde ela se refugiava durante as férias universitárias. Porque não ficar na cidade junto às outras moças? Em meio a tantas paisagens, nada mais a atraía do que o torso daquele homem rude a selar, alimentar e montar os cavalos. Torso suado, recendendo a estribo. Crinas dilatadas, farejando mel de frutas maduras. Certa feita, durante uma tarde quente, ela passou pela baia em direção ao rio. Usava um vestido longo em seda branca, transparente. O seu corpo tremeluzia e escorria no ar. (...)

Do livro Contos: “O mais profundo é a pele”. Inédito




quinta-feira, 17 de setembro de 2015

    Gian Lorenzo Bernini - O artista amado pelos Papas 


Gian Lorenzo Bernini, não confundi-lo com o seu pai, Pietro Bernini, foi um escultor e pintor italiano do séc. XVII que derramou sobre Roma o que seria a denominada "arte barroca". Nascido em Nápoles, chegou a Roma aos oito anos de idade e, de imediato, caiu nas graças do, então,  Papa. O Cardeal Borghese o quis adotar e o Papa Gregório fez dele um cavalheiro, quando Bernini tinha apenas 20 anos de idade. Passional e bon vivant, Bernini apaixonou-se pela esposa de Matteo Buonarelli e tomou-a para si. Mas como Constância, nome de sua amada, não era nada constante, o traiu com o seu irmão Luigi. Bernini, por vingança, quebrou algumas costelas de Luigi e ordenou que o seu servo ferisse o rosto de Constança. Constança foi presa, Luigi, banido. O servo foi preso, mas Bernini não foi condenado. Por pesada penitência, o Papa Urbano VIII mandou que Bernini se casasse com Caterina, filha de um abastado advogado romano e considerada a mulher mais bela de Roma. Ah! E o Papa Urbano VIII, claro, tinha Bernini como o seu melhor amigo...rs



Fonte na Piazza Navona - Roma

Altar Papal - Basílica de São Pedro, Roma.

O Rapto de Prosérpina - Bernini tinha apenas 23 anos de idade quando a esculpiu.

O Êxtase de Santa Teresa

Apolo e Daphne

Santa Teresa
O Rapto de Prosérpina


Átrio da Praça de São Pedro - Roma





A Barcaccia na Piazza di Spagna, apenas alguns dias antes de sofrer um atentado em fevereiro de 2015 . Fiquei arrasada...


O prédio da casa de Bernini em Roma




sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Galope
      Andrea Campos


Corra,
que o tempo é o trote
de um alazão dourado
naufragando a pique
na escuridão,
e eu rosa tesa acesa
rebrilhando em pétala
na tua mão,

Corra,
pra que a tua face
inaugure e trace
as linhas
do desejo
luzidio,

Corra que a alma só
não basta,
dedilha essa mulher
que é casta,
no cio.

Corra,
Traz contigo a chama,
restos, galhos, rama
de nosso passado
mais que imperfeito,

Corra, vive,
morre, exclama,
molha, explode
e inflama
esse galope de amor
no peito.









quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Firmino - Um Canto de Amor Sertanejo
                                       Andrea Campos
       

Eu o amei
Desde menino,
Branquelo,
Franzino,
Cicatriz no rosto,
Marca do meu destino.

Gostava de muita troça,
Sela sem estribo à roça,
Nas mãos, bolas de gude,
À tarde, nadar no açude.

Arapuca de gavião,
Tecia feito artesão,
Prendia o pássaro
No fim do dia
Pra de manhã lhe dar
alforria.

Já rapaz, era um peão,
Sendo de tudo capaz,
Afoito pra uma arenga,
Brabo por demais,
Não lhe passava
Qualquer pendenga,
A palavra nele era arte
Na boa briga sem bacamarte,
Na boa guerra em tempos de paz.

Comigo, mão na mão, subia a serra,
Para mó de me mostrar a paisagem
E foi lá que me beijou, cume da terra,
A nossa imagem afogueando a aragem.

Numa noite da São João,
Levou-me à sua tapera,
Firmino bramia feito fera
E com o pau de um pilão,
Fez de mim mulher com feijão,

Firmino me fervia num brasão
Sem acender fogo por precisão.

Assim fez-se o casamento
Com flor de laranjeira,

E eu só tinha um pensamento:
Ser só dele a vida inteira.

Do modo que eu colhia o milho,
Firmino em mim, colhia um filho,
Toda noite ele era um archote,
Perto da calha, língua e cangote.

Mas foi quando veio o estio
E o açude rachou na margem,
Firmino pensando em viagem
Disse: “vou pru Sum Paulo
Meió que de sede é morrê de frio.’

Arrumei a sua trouxa
E chorei e fiquei roxa,
Mas ele me fez a promessa
De ir, mas voltar depressa.

Assim os anos se passaram,
Firmino em arribação,
Fui envelhecendo como
Borralho,
De Firmino só a ilusão,

Foi quando veio a notícia crespa
Que me deram com precisão:
Firmino havia pousado há tempos
Na arapuca de uma prisão,

Enlouqueci, desesperei,
Minguado era meu gavião,
Não mais veria solto e liberto
A imensidão de seu sertão.

Desde então eu subo a serra
Nas mãos o vazio e a enxada,
- Firmino, eu lhe perdoo,
Afinal quem não erra
Nessa vida danada?

Meu peão, asa sem voo,
Meu amor,
voo no nada.




terça-feira, 8 de setembro de 2015

                                                                   El Greco




Pra mim, pessoalmente, El Greco é um pintor tão espanhol, mas tão espanhol, que sequer o seu nome consegue, a mim, denunciar as suas origens. Eu poderia viver uma vida inteira, ou até mais do que uma vida inteira, sentindo profundamente que El Greco, mais que tudo, é um pintor da cidade espanhola de Toledo. El Greco se chama "Toledo". As cores de suas tela são as cores ocres amarronzadas rebrilhosas da bela Toledo. Suas tintas respiram a cidade, seu coração bate no compasso de cada uma de suas sílabas.  É El Greco que eu encontro nos recônditos de maior intimidade da cidade, naqueles onde não se imagina, jamais que ele será achado: no espaço das intimidades, nos assombros, por detrás dos véus... No entanto, as origens de El Greco estão no que diz o seu nome: O Grego. Nascido Doménikos Theotokópoulos na cidade de Creta no ano de 1541 quando esta pertencia à Sereníssima, à República de Veneza. Foi para lá que foi o nosso "grego", aos vinte e seis anos. Foi com Ticiano e Tintoretto que estudou, integrando o ateliê do primeiro. Mas El Greco não fez parte da Escola de Veneza junto a nomes como Veronese, sequer assim o identificaríamos. Após Veneza, foi para Roma, cidade irmã da cultura grega que a absorveu e a eternizou. Mas, ainda não foi em Roma que o grego se encontrou. Aos trinta e seis anos de idade, quando já, então, "era velho", usando as palavras de Tom Jobim (Tom apresentou-se no Carnegie Hall em Nova York, quando em suas palavras, "já era velho, aos trinta e seis anos de idade"rs), Doménikos chega a Toledo e lá se instala definitivamente. É em Toledo que nasce "El Greco", é em Toledo que a sua obra encontra as suas cores, as suas formas, a sua identidade. El Greco é o pintor grego que é o pintor de Toledo. O corpo de El Greco repousa eternamente em Toledo desde 1614. 

É por essas e outras que inferimos que na vida, uma vez nascidos, sempre estamos por nascer...





























domingo, 6 de setembro de 2015


Para Aylan
          Andrea Campos


Te darei o caminho não trilhado,
O beijo não roubado,
O sonho abortado.

Te darei a fome rasa e louca,
O mel e o fel da boca,
A vida imensa e pouca,
Te darei a viagem corrompida
Por ondas escorridas
Em praias esquecidas.

Te darei mar e sangue
Que incendeia
Pululando em tua veia.
Pra cada  um de teus sapatos,
Te darei. inteira, a meia.
Terás sempre por fiança
Ser pra sempre uma criança,

Se te salvarem não foi ágil,
No teu pouco corpo frágil
Te darei o meu naufrágio.

Mas, não te darei
Os dias que se consomem
feito nada pelo homem.

Eis o nome de  teu algoz:  
Todos nós.
Eis a nossa pena:
A perpétua de sermos sós.

Sendo toda nossa a culpa
Pra que tudo fosse assim,
Se não posso te dar vida
E a palavra que diz sim,
Dou-te cheia  a  tua morte
Que não pára de morrer de
sal e areia dentro em mim.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

                                                          LUÍS VAZ DE CAMÕES



Poeta português do Séc. XVI. Maior poeta de toda a história de Portugal. Um dos maiores poetas da literatura universal de todos os tempos. Você fala a língua de Camões?rs



AS armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;


E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas                
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.


Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta."

LUÍS DE CAMÕES in "Os Lusíadas", Canto I


Soneto

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;                  
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?





Soneto


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,                         
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou 
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.








As circunstâncias nas quais Camões escreveu o belíssimo poema acima:  O navio no qual estava o soldado Camões em expedição no oriente, junto à sua amada Dinamene naufragou. Camões que havia há pouco terminado de escrever Os Lusíadas,  conseguiu salvar a si e a seu manuscrito, nadando com um braço e segurando Os Lusíadas com o outro (pode parecer anedótico, mas o fato é que houve o naufrágio e ele conseguiu que os originais de Os Lusíadas fosse salvo ileso). O mesmo, infelizmente, não ocorreu à sua amada Dinamene que morreu afogada no naufrágio. Foi pra ela que ele escreveu esse poema.








Soneto


"Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;        
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!"




Agora, Inês é morta". Essa popular expressão que significa que algo é irremediável, refere-se a um episódio histórico do séc. XIV que se passou em Portugal e que foi belamente narrado por Camões em "Os Lusíadas" no episódio sobre o assassinato da bela Inês de Castro, a amada do Príncipe D. Pedro de Portugal. Temendo que o filho a desposasse, o pai de D.Pedro, D. Afonso, manda executá-la, mesmo diante de seu belíssimo pedido de clemência, junto a seus filhos, netos de D. Afonso. Inês foi morta por degolamento. Apaixonado e desesperado, ao tomar assento no trono como Rei de Portugal, D. Pedro proclama Dona Inês sua rainha. daí ela ter se tornado conhecida como a "rainha morta". E haja paixão!rs

118
Passada esta tão próspera vitória, 
Tornado Afonso à Lusitana Terra, 
A se lograr da paz com tanta glória 
Quanta soube ganhar na dura guerra, 
O caso triste e dino da memória, 
Que do sepulcro os homens desenterra, 
Aconteceu da mísera e mesquinha 
Que despois de ser morta foi Rainha.

119
Tu, só tu, puro amor, com força crua, 
Que os corações humanos tanto obriga, 
Deste causa à molesta morte sua, 
Como se fora pérfida inimiga. 
Se dizem, fero Amor, que a sede tua 
Nem com lágrimas tristes se mitiga, 
É porque queres, áspero e tirano, 
Tuas aras banhar em sangue humano.

120
Estavas, linda Inês, posta em sossego, 
De teus anos colhendo doce fruito, 
Naquele engano da alma, ledo e cego, 
Que a fortuna não deixa durar muito, 
Nos saudosos campos do Mondego, 
De teus fermosos olhos nunca enxuito, 
Aos montes insinando e às ervinhas 
O nome que no peito escrito tinhas.
...


134
Assi como a bonina, que cortada 
Antes do tempo foi, cândida e bela, 
Sendo das mãos lacivas maltratada 
Da minina que a trouxe na capela, 
O cheiro traz perdido e a cor murchada: 
Tal está, morta, a pálida donzela, 
Secas do rosto as rosas e perdida 
A branca e viva cor, co a doce vida. 

135
As filhas do Mondego a morte escura 
Longo tempo chorando memoraram, 
E, por memória eterna, em fonte pura 
As lágrimas choradas transformaram. 
O nome lhe puseram, que inda dura, 
Dos amores de Inês, que ali passaram. 
Vede que fresca fonte rega as flores, 
Que lágrimas são a água e o nome Amores.

LUÍS DE CAMÕES. episódio da morte de Inês de Castro, in OS LUSÍADAS, Canto III, oitavas 118 a 135.



     

                                          
"Os Lusíadas" - Episódio do Velho do Restelo - Luís de Camões. O poema épico "Os Lusíadas" tem por escopo celebrar o heroísmo e as conquistas portuguesas além-mares, mormente centradas na figura de Pero Vaz de caminha e adjacentes, mas nesse episódio do poema, Camões faz uma crítica à desbragada e vã ambição lusa. Alguns estudiosos afirmam que "O Velho do Restelo" seria o próprio Camões.

O episódio vai da oitava 94 à oitava 104

95 

—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça 

Desta vaidade, a quem chamamos Fama! 

Ó fraudulento gosto, que se atiça 

C'uma aura popular, que honra se chama! 

Que castigo tamanho e que justiça 

Fazes no peito vão que muito te ama! 

Que mortes, que perigos, que tormentas, 

Que crueldades neles experimentas! 

96 

— "Dura inquietação d'alma e da vida, 

Fonte de desamparos e adultérios, 

Sagaz consumidora conhecida 

De fazendas, de reinos e de impérios: 

Chamam-te ilustre, chamam-te subida, 

Sendo dina de infames vitupérios; 

Chamam-te Fama e Glória soberana, 

Nomes com quem se o povo néscio engana! 

97 

—"A que novos desastres determinas 

De levar estes reinos e esta gente? 

Que perigos, que mortes lhe destinas 

Debaixo dalgum nome preminente? 

Que promessas de reinos, e de minas 

D'ouro, que lhe farás tão facilmente? 

Que famas lhe prometerás? que histórias? 

Que triunfos, que palmas, que vitórias? 






Camões era soldado do exército português. Perdeu a visão do olho direito em uma batalha no Marrocos. Ou seja, escreveu Os Lusíadas enxergando com um olho só. O que eu fico ainda mais impressionada é de como ele conseguiu escrever Os Lusíadas nessas expedições, dentro de navios precários sem o auxílio de uma biblioteca. Se vocês forem ler Os Lusíadas ou se já o leram, sabem que ele é um poema épico, histórico, no modelo da Eneida de Virgílio e de A Divina Comédia de Dante. Ou seja, cheio de relatos históricos e mitológicos, transbordando  de cultura clássica e renascentista. Como fazer isso sem o auxílio de uma biblioteca? Em meio a batalhas e a longas viagens oceânicas? Fantástico!!!! Viva Camões! Viva Camões! Viva Camões!rs










SÔBOLOS RIOS QUE VÃO


Sôbolos rios que vão
Por Babylonia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nella passei.
Alli o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,
Babylonia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Alli lembranças contentes
N'alma se representárão;
E minhas cousas ausentes
Se fizerão tão presentes,
Como se nunca passárão.
Alli, despois d'acordado,
Co'o rosto banhado em ágoa,
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não he gôsto, mas he mágoa

E vi que todos os danos
Se causavão das mudanças,
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo ás esperanças.
Alli vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem;
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.

Vi aquillo que mais val
Qu'então s'entende melhor,
Quando mais perdido for:
Vi ao bem succeder mal,
E ao mal muito peor.
E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento:
Vi nenhum contentamento;
E vejo-me a mi, qu'espalho
Tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas ágoas
Com que banho este papel:
Bem parece ser cruel
Variedade de mágoas,
E confusão de Babel.
Como homem, que por exemplo
Dos trances em que se achou,
Despois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou:

Assi, despois qu'assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os orgãos com que cantava.
Aquelle instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: Musica amada,
Deixo-vos neste arvoredo
Á memoria consagrada.

Frauta minha, que tangendo
Os montes fazieis vir
Par'onde estaveis, correndo;
E as ágoas, que hião descendo,
Tornavão logo a subir;
Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que s'amansavão;
E as ovelhas, que pastavão,
Das hervas se fartarão,
Que por vos ouvir deixavão.

Ja não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florecente;
Nem poreis freio á corrente,
E mais se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
Nem podereis ja trazer
Atraz vós a fonte pura;
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.

Ficareis offerecida
Á Fama, que sempre vela,
Frauta de mi tão querida;
Porque mudando-se a vida,
Se mudão os gostos della.
Acha a tenra mocidade
Prazeres accommodados;
E logo a maior idade
Ja sente por pouquidade
Aquelles gostos passados.

Hum gôsto, que hoje s'alcança,
Á manhãa ja o não vejo:
Assi nos traz a mudança
D'esperança em esperança,
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Qu'esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
O canto da mocidade:
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que he fôrça da ventura.
Qu'idade, tempo, e espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mi puderão tanto,
Que, postoque deixo o canto,
A causa delle deixasse.

Mas em tristezas e nojos,
Em gôsto e contentamento;
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por quien muero tan contento.
Orgãos e frauta deixava,
Despôjo meu tão querido,
No salgueiro que alli'stava,
Que para tropheo ficava
De quem me tinha vencido.

Mas lembranças da affeição
Que alli captivo me tinha,
Me perguntárão então,
Qu'era da musica minha,
Que eu cantava em Sião?
Que foi daquelle cantar,
Das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar,
Pois sempre ajuda a passar
Qualquer trabalho passado?

Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso
Por entre o espêsso arvoredo;
E de noite o temeroso
Cantando refreia o medo.
Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente;
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.

Eu qu'estas cousas senti
N'alma de mágoas tão cheia,
Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
Quem em chôro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos engeito.

Que não parece razão,
Nem sería cousa idonia,
Por abrandar a paixão
Que cantasse em Babylonia
As cantigas de Sião.
Que quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes morra de tristeza,
Que por abrandá-la cante.

Que se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
O que passo, e passei ja,
Nem menos o escreverei;
Porque a penna cansará,
E eu não descansarei.

Que se vida tão pequena
S'accrescenta em terra estranha;
E se Amor assi o ordena,
Razão he que canse a penna
D'escrever pena tamanha.
Porém, se para assentar
O que sente o coração,
A penna ja me cansar,
Não canse para voar
A memoria em Sião.

Terra bem-aventurada,
Se por algum movimento
D'alma me fores tirada,
Minha penna seja dada
A perpétuo esquecimento.
A pena deste destêrro,
Qu'eu mais desejo esculpida
Em pedra, ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu êrro.

E se eu cantar quizer
Em Babylonia sujeito,
Hierusalem, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito;
A minha lingua se apegue
Ás fauces, pois te perdi,
S'em quanto viver assi
Houver tempo, em que te negue,
Ou que m'esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de glória.
S'eu nunca vi tua essencia,
Como me lembras na ausencia?
Não me lembras na memoria,
Senão na reminiscencia:
Que a alma he taboa rasa,
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que vôa da propria casa,
E sobe á patria divina.

Não he logo a saudade
Das terras onde nasceo
A carne, mas he do Ceo,
Daquella santa Cidade,
Donde est'alma descendeo.
E aquella humana figura,
Que cá me póde alterar,
Não he quem se ha de buscar;
He raio da formosura,
Que só se deve d'amar.

Que os olhos, e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
Não do sol, nem da candeia,
He sombra daquella ideia,
Qu'em Deos está mais perfeita.
E os que cá me captivárão,
São poderosos affeitos
Qu'os corações tẽe sujeitos;
Sophistas, que m'ensinárão
Maos caminhos por direitos.

Destes o mando tyrano
M'obriga com desatino
A cantar ao som do dano
Cantares d'amor profano,
Por versos d'amor divino.
Mas eu, lustrado co'o santo
Raio, na terra de dor,
De confusões e d'espanto
Como hei de cantar o canto,
Que só se deve ao Senhor?

Tanto póde o beneficio
Da graça que dá saude,
Que ordena que a vida mude:
E o qu'eu tomei por vício,
Me faz grao para a virtude;
E faz qu'este natural
Amor, que tanto se préza,
Suba da sombra ao real,
Da particular belleza
Para a belleza geral.

Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Hierusalem sagrada,
E tome a lyra dourada
Para só cantar de ti;
Não captivo e ferrolhado
Na Babylonia infernal,
Mas dos vicios desatado,
E cá desta a ti levado,
Patria minha natural.

E s'eu mais der a cerviz
A mundanos accidentes,
Duros, tyrannos e urgentes,
Risque-se quanto ja fiz
Do grão livro dos viventes.
E, tomando ja na mão
A lyra santa e capaz
D'outra mais alta invenção,
Calle-se esta confusão,
Cante-se a visão de paz.

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este accento santo,
Mova-se no mundo espanto;
Que do que ja mal cantei
A palinodia ja canto.
A vós só me quero ir,
Senhor, e grão Capitão
Da alta tôrre de Sião,
Á qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.

No grão dia singular,
Que na lyra em douto som
Hierusalem celebrar,
Lembrae-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
Aquelles que tintos vão
No pobre sangue innocente,
Soberbos co'o poder vão,
Arrazá-los igualmente:
Conheção que humanos são.

E aquelle poder tão duro
Dos affectos com que venho,
Qu'encendem alma e engenho;
Que ja m'entrárão o muro
Do livre arbitrio que tenho;
Estes, que tão furiosos
Gritando vem a escalar-me,
Maos espiritos damnosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me;

Derribae-os, fiquem sós,
De fôrças fracos, imbelles;
Porque não podemos nós,
Nem com elles ir a vós,
Nem sem vós tirar-nos delles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo Capitão,
Nesta minha Fortaleza
Não puzerdes guarnição.

E tu, ó carne, qu'encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de miseria cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia;
Beato só póde ser
Quem co'a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste:

Quem com disciplina crua
Se fere mais que huma vez;
Cuja alma, de vicios nua,
Faz nodas na carne sua,
Que ja a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes,
E em nascendo os affogar,
Por não virem a parar
Em vicios graves e urgentes:
Quem com elles logo der
Na pedra do furor santo,
E batendo os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Emfim cabeça do canto:
Quem logo, quando imagina
Nos vicios da carne má,
Os pensamentos declina
Áquella Carne divina,
Que na Cruz esteve ja.

Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visibil,
Quanto ao homem for possibil,
Passar logo entendimento
Para o mundo intelligibil;
Alli achará alegria
Em tudo perfeita, e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem por pouca recreia,
Nem por sobeja enfastia.

Alli verá tão profundo
Mysterio na summa Alteza,
Que, vencida a natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
Minha patria singular,
Se só com te imaginar,
Tanto sobe o entendimento,
Que fara se em ti se achar?

Ditoso quem se partir
Para ti, terra excellente,
Tão justo e tão penitente,
Que despois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!






Depois de ter combatido bravamente em inúmeras batalhas em África e em Ásia pelas cores lusas, depois de ter sido preso inúmeras vezes, depois de ter sobrevivido a naufrágios, depois de ter publicado o maior poema épico da língua portuguesa, consolidando o idioma, o nosso Camões morreu na mais absoluta miséria. Morava em um quartinho perto da Igreja de Sant'Ana em Lisboa, adoeceu de peste, foi para o hospital, lá faleceu e foi enterrado no cemitério dos pobres. Isso me deixa arrasada... Não bastasse Dante ter morrido no exílio sem poder voltar a sua Florença natal, Camões morreu na penúria... O fato é que a vida não deixa de ser a vida, não importa pra quem o seja... O passamento de Camões se deu no dia 10 de junho de 1580. Em razão disso,  oficialmente, 10 de junho é o dia no qual se comemora o dia de Camões e o dia de Portugal. E continuemos nos comunicando em Camões!rs

Camões na prisão em Goa.