terça-feira, 20 de junho de 2017

Notas sobre Musicologia e Gênero: Por um Erotismo escrito nas Estrelas.




Estava nos tempos das aulas de piano, quando, apercebido de meu interesse em História, o meu professor sugeriu que eu lesse "História da Música Ocidental" de Grout e Palisca. É um livro poético, até porque a música, em seus primórdios, confundia-se com a poesia. Mas o que mais me embeveceu foi descobrir que para muitos pensadores gregos, a música estava ligada à astronomia, ou seja, dialogava com as estrelas. Ptolomeu, o mais sistemático dos teóricos da música na antiguidade, foi também o maior astrônomo de seu tempo. Platão, no esteio dessa ideia, concebeu o mito da "música das esferas", aquela composta pela revolução dos planetas, das estrelas, para a qual os seres humanos não teriam capacidade de ouvir (não resta dúvida que Platão não conheceu Olavo Bilac...rs). Mas, voltemos ao nosso assunto que é sério e eu não vou "perder o senso" rs. O fato é que a música, na concepção grega, orbitava-nos tangida pelo vértice das musas. Musas que guardavam a origem de seu signo e de seu sentido na sua forma adjetivada. Diante de tamanha transcendência, como tocar a chave da imanência musical? Como descobrir-lhe a sexualidade, ou, do alto de sua alta sublimação, a música teria o sexo dos anjos? O próprio Platão em sua República nos faz inferir que a música traz em si, fortes elementos femininos, uma vez que, segundo o filósofo, um excesso de música, tornaria os homens "efeminados". Tomando emprestado de Nietzsche os termos "dionisíaco" e "apolíneo" de seu "O Nascimento da Tragédia", e associando a sua concepção com a de Platão diríamos, então, que a música seria a expressão máxima de um gozo feminino. 

No entanto, a musicologia tem sido, desde sempre, androcêntrica. Quando, em um trecho musical se fala em tempos fortes, estes são considerados “masculinos”, enquanto que os tempos fracos são considerados, por excelência, “femininos”. O caráter masculino na música exsurgiria nos temas de abertura: enérgicos, heroicos, enquanto que o caráter feminino moraria nos temas subsidiários, flexíveis. Na música, também estão presentes processos procriativos, com clímax e resolução da expectativa, tensão e relaxamento, numa clara metáfora do encontro sexual. No entanto, há, desde sempre, uma forte resistência em inocular, na musicologia, esse caráter libidinal, mais ainda, quando se trata de música clássica, cujo princípio é o de ser a música das estrelas. A essa resistência em face da libido, corresponderia a resistência da musicologia em face do feminino. A presença das mulheres na música, segundo musicólogas mulheres, revelaria a correspondência entre a música e o poder erótico. A mulher na música, seja como instrumentistas, compositoras, regentes, ou as notas femininas em um pentagrama, não como "fracas" ou "subsidiárias", mas em seu fulgor extasíaco, liberaria uma corrente de prazer e desejo que desafiaria a cientificidade da musicologia, deslegitimando-a enquanto ciência.

Mas, tamponar essa corrente de prazer e desejo é obstruir o que pode fazer a música mais ainda resplandecer em amor e vida.


Que a música, então, abra as suas notas, também, para o dionisíaco, para a força intensa e inesgotável do fluxo feminino transformador, para o eros transcendente que arrepia e faz piscar o feminino inominável. Assim, diríamos a Platão, se queres ouvir a música das estrelas, amai, femininamente, dionisiacamente, para entendê-la, "pois só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas".