quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Início do Canto III do Paraíso (Divina Comédia) de Dante Alighieri, com ilustração de "O Jardim das Delícias"(1504) do pintor holandês Hieronymus Bosch.



Canto III (Paraíso)
(trecho)


O SOL por quem primeiro ardeu meu peito,
Provando e refutando, me mostrara
3 Da formosa verdade o doce aspeito.

Por confessar-me do erro, em que vagara,
Quanto possível fosse, convencido,
6 Mais alto a fronte para a sua alçara.

Eis fui de uma visão tal possuído,
Que olvidei meu desejo inteiramente,
9 Ficando em contemplá-la submergido.

Bem como em cristal puro e transparente,
Ou nágua clara, límpida e tranquila,
12 Que deixa à vista o fundo seu patente,

A imagem nossa quase se aniquila,
Em modo, que uma per’la em nívea fronte
15 Se faz mais perceptível à pupila,

Assim, dispostas a falar defronte
Várias figuras vi: eu no erro oposto
18 De Narciso caí amando a fonte.










segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Alguns versos em homenagem à "palavra" e à magnífica obra do jovem pintor italiano Roberto Ferri,
o nosso atual  "Caravaggio".







Na palavra se inicia o teu corpo
e no silêncio, ele se encerra.
Por entre as grades, vou passando as letras
que destrancam as portas da tua pele.






São muitos os caminhos de um homem,
mas é só na palavra que o seu caminho se sustenta.





Ao desertar a palavra,
caiu na danação dos ateus
que não creem,
mas não vivem sem Deus.





E por ser palavra
em meio a tantas palavras,
amou a uma só palavra:
a que lhe deu acento.




Sorver o néctar da palavra
até perder os meus
e os seus sentidos.





Escrevo e a palavra de um outro
vai me anotando a mim
com o seu batom de sangue no espelho.





Encontrar o amor
é encontrar a palavra
que nos foi, para sempre,
perdida.





























Amar é
perseguir
a palavra perdida
que nunca nos será tida.




Só quem teve a palavra
amor perdida,
tem pra dar
a palavra amorosa.





No princípio era o verbo,
No fim, a tua boca.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Aves Corpus
           Andrea Campos


O amor é um crime ingente:
o autor nunca tem culpa
e não há vítima inocente.
O amor não se escreve:
se comete.
Pena de amor não se cumpre:
se goza.
Autocondenação de fato
não punível,
sentença irrecorrível,
subversão da coisa julgada.
O amor é um tiro impossível
no nada.
Habeas Corpus de Aves Corpus,
agravos em devaneio
no ir e vir ao seio.
Alvará sem soltura,
perdição na loucura.
O amor é querendo o bem,
fazer o mal.
E uma vez livre do amor,
voltar e prender-se ao amor,
a única liberdade incondicional.


Alex Stoddard

terça-feira, 6 de outubro de 2015

                                               A Queda da Volúpia na Bastilha
                                              A Arte de Jean-Honoré Fragonard




O final do século XVIII e inícios do século XIX foram marcados pelos últimos suspiros do Antigo Regime na Europa, o propalado "Ancien Régime". Tempos profícuos. Giros copérnicos eram dados na filosofia, na política e no direito: Jean-Jacques Rousseau e o seu "Contrato Social", Montesquieu com "O Espírito das Leis", Beccaria e a revolucionária "Dos Delitos e das Penas". As luzes cintilavam e refulgiam. Enquanto isso, uma nobreza sedentária, ociosa, azeitada pelo "dolce far niente" continuava entregue às intrigas de salão, às maquinações de alcova, à luxúria e às frivolidades. E essa nobreza extasíaca e inerme em estágio de resplandescência e ocaso foi belamente pintada por artistas franceses tais como Watteau e Jean-Honoré Fragonard. Fiquemos aqui com Fragonard, o artista nascido nos alpes marítimos, na região da Côte d'Azur. Fragonard conheceu e viveu imbricado nesse bailar de tensões em carnes "nobres". Provavelmente, ele não tinha a profunda consciência de que retratava uma época que agonizava, encastelado que também estava nos meandros palacianos. Ou não. De toda a forma, os seus rococós foram expurgados e desvalorizados após a queda da Bastilha, da Revolução Francesa, por representarem tudo o que se queria debelar e superar para que um novo mundo e uma nova era acordasse. 

Passada essa fase de acomodação e transição, a obra de Fragonard ressurgiu e é eternamente rediviva em  suas extasias e volteios, uma fiel e indelével crônica de sua época. Afinal, a queda foi a da Bastilha, a volúpia e a cor são inamovíveis da arte e da natureza humana e continuarão sempre a nos derramar os olhos do alto de seus pedestais.




































sexta-feira, 2 de outubro de 2015

                                         Anaïs Nin et Gustave Courbet






"Et nous voici liées, inextricablement. Jái ramassé et rassemblé tous les fragments. Je les ramène à toi. Tu as couru avec le vent, te dispersant, le dissolvant. J'ai couru derrière toi, comme ton ombre, recueillant ce que tu as semé dans la profondeur de mes coffres.


                              Je suis l´autre face de toi



Nos visages se sont soudés dans la douceur de nos cheveux, ils ont fusionné, exposant les deux profils d'une même âme. Aussi bien, lorsque je passais comme un souffle à travers une pièce, je créais un malaise chez les autres car ils se rendaient compte que je venais de passer.

J'étais la flamme incolore de ton souffle, ton air de simoun plissant et replissant toute la terre. J'emprutai ta visible apparence et ce fut à travers toi que j'imprimai ma trace sur le monde.


                           Ceci est le livre que tu composas
                                          et tu es la femme
                                               que je suis

(...)


Une mesure de musique suffit pour suspendre, un temps, la dislocation; mais alors réapparaît le sourire et je sais, quant à moi, que c'en est fait, pour nous deux, de la cohésion."


Anaïs Nin dans "La Maison de L'Inceste".


Gustave Courbet