terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

 "MOISÉS, POR QUE NÃO FALAS?": MICHELÂNGELO E OS SEUS EMBATES COM DEUS.




A maneira mais simples, imediata e, a princípio, acessível a todas as pessoas para modelar a forma humana é a sua reprodução natural. Sementes masculinas e femininas fecundam-se e basta: A carne se faz carne. Michelangelo desejava reproduzir a forma humana em seu mais alto esplendor, com a fidelidade às imagens espelhadas nas linhas divinas, e algo incomodava-o profundamente: A precariedade e a provisoriedade da vida humana. A sua mortalidade.
Para sanar o ciclo da mortalidade, era insuficiente a carne fazer-se carne, sendo essa, inclusive a raiz da eterna finitude. É quando, Michelângelo, uma vez ciente de seus dons, inicia o seu embate com Deus. Tira-lhe a narrativa de criar o homem do pó na sua representação Sistina, pois, mesmo se vindo do pó, Adão em seu afresco apresenta-se já feito, cabendo a Deus apenas oferecer-lhe a vida através de uma centelha elétrica. A narrativa de modelar o homem do pó, será dele, de Michelângelo, e como um Prometeu desafiará Deus na sua obsessão de conferir a esse mesmo homem, aquilo o que Deus lhe negou: perfeição e eternidade.
E é do pó que Michelângelo fará nascer o Davi, e é da pedra que Michelângelo, em suas palavras, "libertará" a Pietà. No corpo a corpo com a pedra, na batalha entre o pó de sua carne e a carne da pedra feita em pó.
Uma vez finalizada a escultura do profeta Moisés, talhada para o mausoléu do Papa mecenas, Júlio II, Michelângelo, em um ato de delírio, inebriado com a perfeição do que ele próprio criara, começa a martelar a estátua fervorosamente e a repetir: "Moisés, por que não falas!!!!!!????". Para decepção de Michelângelo, a imortalidade é muda, pois não tem mais nada a pedir.
Banhado no fogo de seu talento que, diversamente de Prometeu, não foi roubado, mas ofertado por Deus, Michelângelo, assim como Prometeu, respirou uma longa vida atrelado a uma rocha, escravo da beleza e do infinito a fazer brotar das pedras.
Esculpiu carnes em pedra até os últimos de seus dias. Mas, nos anos que antecederam a sua morte, da ânsia pela eternidade da pedra já havia se libertado. Repreendia quem o chamasse de escultor, retrucando não ser nem escultor nem pintor, mas, simplesmente, "Michelângelo".
E em sendo Michelângelo, sua carne morreu e em sendo o Moisés, sua arte falou para sempre. Em sendo a sua alma, entregou-a a Deus.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

 MICHELÂNGELO e o CAPITALISMO FINANCEIRO.

(E o que isso tem a ver conosco...)






"Caríssimo pai,
Por vossa última carta soube que devolvestes quarenta ducados ao
spedalingo. Fizestes bem, mas, caso venhais a saber que estão em perigo, rogo-vos que me aviseis.
...
Michelângelo Buonarroti, escultor em Roma."
Aquele que, desavisadamente, procure pesquisar nas cartas de Michelângelo Buonarroti os seus arroubos espirituais e ilações sobre a Arte, fatalmente frustrar-se-á. Para tanto, a recomendação é que leia os seus sonetos. Ao esquadrinhar as suas cartas, no entanto, terá a oportunidade de deparar-se com o imprevisto e inusitado: As bases do atual capitalismo financeiro.
Através dessas cartas, de imediato, percebemos o forte compromisso que o artista tinha com as demandas práticas da vida e a luta pela sobrevivência. E mais, por meio dessas missivas temos a confirmação de que as cidades italianas foram mesmo o gérmen do capitalismo financeiro mundial, onde nasceu o atual sistema monetário. Para um financista, economista, banqueiro, professor de direito comercial, as cartas escritas por Michelângelo revelam-se uma fonte robusta e preciosa para análises históricas sobre os albores do capitalismo e do sistema bancário.
Michelângelo era filho de uma família orgulhosa, de raízes nobres e falida. A virulência com a qual o seu pai respondia aos seus anseios de vida artística, justificavam-se no seu pavor de que a família, além de degradada financeiramente, decaísse ainda mais, passando do valorizado trabalho intelectual, para o depreciativo trabalho manual. Se a vocação de Michelângelo tinha os eflúvios da arte, em essência, para o seu pai, não passava da vocação para um trabalho de pedreiro e pintador de paredes.
Foi apenas ao perceber que os dotes de seu filho eram excepcionais, que o senhor Lodovico Buonarroti aquiesceu com que o menino frequentasse uma oficina de arte, e não sem receber bons ducados por isso. Foi assim que Michelângelo passou a ser arrimo de família e a sustentar não apenas o seu pai, mas a auxiliar financeiramente os seus quatro irmãos.
Muito cioso dessa responsabilidade, a de reerguer a sua família financeiramente, o artista sempre esteve muito disposto às lutas renhidas para ganho do pão de cada dia e atento ao devido pagamento por seu trabalho: era um grande empresário de si mesmo e altivo credor de uma remuneração justa a ser angariada em troca dos frutos de sua genialidade.
Se trabalhou sacrificadamente na pintura da abóbada da Capela Sistina não o fez sem ter recebido muito bem pela tortura, um montante que equivaleria, atualmente, a quase um milhão de dólares.
Mas voltemos às cartas escritas por Michelângelo. O que me causou perplexidade e inopinada surpresa foi verificar como no século XVI, o sistema bancário, financeiro na Itália, menos do que primitivo, era extremamente azeitado, rápido e eficaz. Em tempos nos quais não existiam as tecnologias atuais, admirei-me como Michelângelo estava a todo o tempo fazendo transações financeiras: transferências, investimentos, aplicações e empréstimos. E o quanto isso acontecia de forma segura e célere.
Mais do que qualquer atividade de raiz anglo-saxã ou germânica, e todas as suas importantes contribuições, incontornavelmente, as cidades italianas renascentistas são o berço do nosso atual sistema financeiro e cambiário. Ou seja, o capitalismo financeiro é latino, nasceu no Lácio. É mais uma contribuição longeva da cultura italiana para a História.
Basta debruçarmo-nos um pouco mais sobre o tema, para reafirmarmos que a República Florentina que possibilitou o renascimento artístico foi forjada por uma classe poderosa de comerciantes e banqueiros. A força desse contingente era que fazia circular e reproduzir o capital desde a criação do "florim de ouro" em 1252, moeda que junto ao ducado veneziano seria por mais de três séculos o que hoje é o dólar, ou seja, um padrão monetário mundial. Força econômica que não apenas possibilitou o renascimento das artes e das ciências, mas também, viabilizou as navegaçõesve as descobertas do novo mundo. Lembremo-nos que, enquanto Michelângelo esculpia a Pietá, o Davi e pintava o teto da Capela Sistina, as Américas tinham sido alcançadas por Américo Vespúcio que, por sinal, é um florentino.
Sim, Américo Vespúcio, esse que dá nome ao nosso continente e à nossa identidade territorial foi um navegador e comerciante florentino, representante de armadores e banqueiros de sua terra que financiaram os anseios expansionistas dos países ibéricos, o que faz de nós, de algum modo, também filhos de Florença. Portanto, e peço-lhe para que não ria: irmãos de Michelângelo...
Nessas cartas michelangeanas, portanto, nas quais, se há pouca espiritualidade e Arte, há, no entanto, muitas chaves preciosas para o desvencilhamento do funcionamento do sistema bancário e financeiro florentino, esteio de nosso mundo capitalista atual, que bem ou mal, nos possibilitou e do qual Michelângelo era um ativo correntista...
Ao final de sua vida, Michelângelo era um homem rico, riquíssimo. Rico a tal ponto de nada ter cobrado para fazer o projeto da cúpula da Basílica de São Pedro. Dizia que a faria, unicamente, por adoração a Deus...
Mas, mesmo tendo se servido durante toda a sua vida do já avançado sistema capitalista financeiro italiano, Michelângelo preferia trazer boa parte de suas riquezas junto a si. Se entregou a sua alma a Deus e o seu corpo à terra, sob o seu leito de morte jaziam milhões de florins em pedras de ouro.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

 A PINTURA DA ABÓBADA DA CAPELA SISTINA COMO UMA TRAMA DIABÓLICA PARA DERRUBAR MICHELÂNGELO.




Tendo já presenteado o mundo com o Baco, a Pietà e o Davi, Michelângelo já era um escultor reconhecido e famoso em terras italianas. Não sem demora, portanto, o recente aclamado Papa, Júlio II, cioso de uma imagem grandiosa póstera, comissionou o artista para que esculpisse a sua tumba. Seria uma tumba faustuosa, quase faraônica, com vários pavimentos e quarenta estátuas. Os olhos de Michelângelo ferveram diante da proposta. O minimalismo não estava em seu cardápio artístico.
Entusiasmadamente, o florentino embrenhou-se nas montanhas de Carrara a fim de delas extrair as melhores pedras de mármore. Levou nove meses nessa faena exaustiva, perigosa - muitos morriam ao rolarem as imensas pedras dos cumes às bases das montanhas -, mas tão saborosa para aquele que tinha no mármore o seu mais instigante e desafiador amante. Uma vez retornando a Roma a fim de prestar contas ao Papa, inesperadamente, não foi por ele atendido...
Ao mesmo tempo em que o Papa tinha projetos para sua tumba espetacular, também havia comissionado o arquiteto Bramante para erguer a nova Basílica de São Pedro. Bramante já era por demais renomado e agraciado pelo papado. O advento "Michelângelo" surgia-lhe como uma ameaça. Os tentáculos da inveja o absorviam e suas práticas que acenavam com o propósito de, literalmente, por fim ao artista, já eram adivinhadas pelo gênio de Florença. Com as reiteradas negativas do Papa em recebê-lo, Michelângelo suspeitou que não apenas Bramante estaria envenenando o Papa contra ele, mas planejava envenená-lo.
Tendo ouvido dizer que o Papa não mais estaria disposto a adquirir pedras, a matéria-prima michelangeana por excelência, e sentindo-se expulso e humilhado, o escultor foge para Florença, explicando todo esse episódio em uma carta ao seu irmão Giovanni e advertindo-lhe que fugia de Roma, também, para evitar que a sua tumba ficasse pronta antes que a do Papa.
Em face da perda do maior artista vivo para satisfazer as suas ânsias de megalomania através da arte, o Papa vai no encalço de Michelângelo e, uma vez, tendo encontrado-o em Bolonha, fazem as pazes e o armistício é selado com uma escultura em bronze feita por Michelângelo em homenagem ao Papa.
Michelângelo, então, volta a Roma, embalado pelo seu sonho de , enfim, empreender o seu projeto para a fantástica tumba do Papa. Toda em mármore, a tumba ficaria postada de forma evidenciada nos interiores da nova Basílica de São Pedro que estava sendo arquitetada por Bramante... Mas, ao que muito parece, não era apenas a Basílica que Bramante continuava a arquitetar...
Antes que Michelângelo retomasse a execução da tumba, o Papa o chama e diz-lhe que o Projeto será suspenso e terá que esperar. Ele precisa de Michelângelo para pintar a abóbada da Capela papal, a Capela Sistina. O artista enfurece-se, exalta-se e grita que não é pintor, mas sim um escultor. Indaga ao Papa o porquê de não comissionar o pintor Rafael para a empreitada. Nega-se, revoltado, a aceitar o encargo. Mas, o Papa, ainda que de Michelângelo apenas conhecesse as esculturas e nenhuma pintura insiste, insiste, insiste... E nessa insistência estaria o veneno de Bramante.
Ao que tudo indica, dado que Bramante não conseguiu livrar-se de Michelângelo em Roma, insistiu para que o Papa, ao invés de seguir com ele no projeto de sua tumba, o que muito provavelmente, apenas endossaria o brilho do genial escultor, entregasse a ele a pintura da Capela. Apostando em um resultado medíocre, o que levaria à desmoralização de Michelângelo e à consagração de Rafael Sanzio em seu lugar, Bramante teria insuflado a intransigência Papal. Enfurecido, triste e deprimido, Michelângelo, por fim, aceita a encomenda diante da chantagem do Papa: "Michelângelo, apenas esculpirás a minha tumba, se pintares a abóbada da Capela". Aceita, mas não sem impor as suas próprias condições, já que o Papa lhe havia dito que gostaria que na abóbada fosse feita uma simples pintura em afresco dos doze apóstolos. E a sua condição é a de fazer os desenhos que lhe aprouverem. Michelângelo, perfeccionista, passaria um ano inteiro apenas elaborando esses desenhos.
Uma vez iniciada a pintura da abóbada e havendo Michelângelo colocado um toldo sob a sua área de trabalho, já que continuavam a ser celebradas missas na Capela, o trabalho de Michelângelo, que ele preferiu seguir fazendo solitariamente, sem assistentes, era um grande segredo.
Curioso sobre se a sua trama estava sendo bem sucedida, Bramante, que tinha uma chave da Capela Sistina, entregou-a a Rafael, a fim de que este, às escondidas, nela adentrasse na ausência de Michelângelo e relatasse o acreditado "fiasco" do trabalho do pintor... Rafael ficou tão mesmerizado com o que se deparou, que mesmo já havendo finalizado a pintura da sua Escola de Atenas, inseriu em seu afresco a figura do filósofo Heráclito com as feições do mestre florentino.
Transcorridos quatro anos do que seria uma infelicidade e uma tortura para Michelângelo, este, que de já tão apropriado da arte que executava passou a fazê-la cada vez mais rapidamente, entregou-a ao Papa. Ao subtrair o toldo que escondia a obra-prima, olhos de encantamento, incredulidade e perplexidade fulminaram as imagens pintadas na abóbada. No lugar dos doze apóstolos, Michelângelo pintara a história do mundo. Se a intenção era derrubar Michelângelo, o artista resplandecia cada vez mais alto.
Enquanto Bramante entendia-se com o Diabo, Michelângelo, ao oferecer à humanidade o melhor que podia, fez o seu pacto com Deus.




domingo, 7 de fevereiro de 2021

 AMOR DE CARNE, AMOR DE ESPÍRITO. AMBOS: AMOR DE ALMA.




Assim como Michelângelo amou profundamente, Vittoria Colonna, também nutriu uma paixão erótica pelo belo jovem, Tommaso dei Cavalieri. Em comum às duas experiências estão o provável platonismo e os embates de Michelângelo consigo mesmo em face dos seus desejos.
Aqui, um belíssimo soneto e um desenho endereçados a Tommaso dei Cavalieri:
A TOMMASO
Espírito nobre, em quem se reflete,
E em cujos belos membros, honestos e queridos, pode-se ver
Tudo o que a natureza e o céu podem alcançar dentro de nós,
Excelência em qualquer outra obra de beleza;
Espírito gracioso, em quem se espera e se acredita
Por dentro - como eles aparecem externamente em seu rosto -
Amor, pena, misericórdia, coisas tão raras
E nunca encontrado na beleza tão verdadeiramente;
O amor me leva cativo e a beleza me amarra;
Piedade e misericórdia com doces olhares
Encha meu coração de grande esperança.
Que lei ou poder no mundo,
Que crueldade deste tempo ou de um tempo por vir,
Poderia impedir a morte de poupar um rosto tão lindo?
Michelângelo Buonarroti.
*
Ilustração: "O Rapto de Ganimedes" por Michelângelo Buonarroti.

Sobre o Rapto de Ganimedes:

O Rapto de Ganimedes está na Mitologia Grega: Assim como Zeus transfornou-se em um touro e raptou Europa, ele também ficou fascinado com a beleza do jovem pastor Ganimedes, transformando-se em uma águia e raptando-o. Diz-se que Zeus, em forma de Águia, possuiu Ganimedes em pleno voo. Uma vez no Olimpo, Ganimedes substituiu Hebe na função de servir néctar aos deuses. Agora, aqui eu fiquei com pena de Ganimedes: Melhor ser pastor na terra do que serviçal no Olimpo, a meu ver... Quanto ao desejo de Zeus, vemos que ele é universal, dirigido aos seres humanos, inobstante o gênero. No que diz respeito às violações sexuais, Zeus está aí, há 4.000 anos nos dizendo que elas podem tanto ser contra homens como contra mulheres.


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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

 "VIRGEM MÃE, FILHA DO TEU FILHO"




Era o ano de 1498 em Florença e o jovem Michelângelo havia completado 23 anos de idade, O obstinado artista já gozava de boa fama não apenas por haver esculpido um revolucionário Baco para um banqueiro florentino, como pelas belas peças que os seus cinzel e martelo criaram durante a temporada na qual vivera no Palácio dos Médici custodiado por Lorenzo, o Magnífico.
Na esteira das faíscas que crepitavam de suas obras, o Cardeal francês, Jean Bilhères de Lagraulas escolheu por apostar alto no jovem artífice e encomendou a Michelangelo uma imagem da Nossa Senhora para a Capela dos Reis de França, então, antiga basílica de São Pedro.
Entusiasmado, Michelângelo acorreu a Carrara onde escolheria a melhor pedra para a sua imagem. No caminho de volta para Florença, recitou os versos que sabia de cor da Divina Comédia de Dante, tendo assim a visão de como seria a sua Pietà.
Quando finalizada a obra, um ano depois, em 1499, junto ao encantamento provocado pela marmórea escultura, para muitos, a mais perfeita um dia já esculpida, alguns criticaram o rosto juvenil da Virgem, além de suas proporções muito superiores às do Cristo morto. A essas objeções, Michelângelo respondia recitando os versos de Dante:
«Ó Virgem mãe, filha do teu filho,
humilde e alta mais que criatura,
fim firme do conselho eterno,
tu és aquela quem nossa natura
tanto nobilitou que o seu feitor
não desdenhou de ser sua feitura.
Reacendeu-se no seio teu o amor
por cujo lume nessa eterna paz
assim foi germinada uma tal flor.
Meridiana luz lá és pra nós
de caridade, e cá, entre os mortais,
desta nossa esperança és viva fonte.
Senhora, és tão grande e tanto vales,
que quem quer graça e não recorre a ti,
quer que sem asas voe o seu anseio."
(Dante, Paraíso, Canto XXIII).
Tendo ouvido um peregrino nomear um outro escultor como o autor de sua Pietà, uma noite, às escondidas, Michelângelo adentrou a Capela e assinou o seu nome sobre o dorso da Virgem "Michelângelo Buonarroti, florentino, foi quem a fez."
Essa foi a primeira e última vez que Michelângelo assinaria uma obra sua. Depois disso, a alma do artista exalaria de toda arte tida por impossível. Assinar não era mais preciso.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

 DESTINO DE MICHELÂNGELO: SER PIETÀ NA VIDA...







O vigor, o brilho renascentista da poetisa Vittoria Colonna, companheira, confidente e interlocutora de Michelângelo não o livrou de, mais uma vez na vida, após a precoce perda de sua mãe, ser o Pietà de uma mulher...
Além de ter velado a amada intermitentemente em seu leito de morte, foi em seus braços e sob as suas lágrimas aflitas que ela deu o seu último suspiro...
LAMENTO pela MORTE de Donna VITTORIA COLONNA
Marquesa de Pescara.
Como é doce para mim dormir o sonho da pedra
O sono profundo é aquele que as estátuas embalam
Quando o século é infame para fechar as pálpebras
Não ver e não sentir tornam-se virtudes
Cale a boca! Não me acorde! Fale baixo...
Quem fala na sala onde a morte cala
Não, não é o escultor imóvel e sonhador
Nem pelo fim de Florença eu sofri tanto
Mulher, eu havia que te ver primeiro, antes
De Michelangelo antes de mim antes do Deus vivo,
Eu tenho ciúmes Dele como tenho ciúmes das flores claras
Que você às vezes misturava ao seu cabelo dourado
Eu chorei muitas vezes na Roma estrangeira
Escola de exílio para o amor separado
O infortúnio pelo qual chorarei amanhã,
Minha Vittoria de olhos fechados que o eterno embeleza,
Você que meus braços nunca irão segurar
Toquei sua mão fria e a tenho em meu coração para sempre,
O arrependimento de não ter ousado tocar na sua testa
0 desejo terrível que nada mais interrompe,
Mulher Colonna na cama em coluna,
Você muda de rosto neste dia angustiante
E a noite das tumbas finais dá a você
As características que dei à capela de San Lorenzo
Para aquela noite que sonha com um mundo diferente.
Amor, você não terá piedade dos meus anos cinzentos
Amor, você não me odeia por muito tempo,
O amor no caixão é amado talvez mais
Nada pode acalmar este pobre velho coração
Ter perdido Vittoria foi ter perdido a minha pátria.
Michelângelo Buonarroti

 E AFINAL, QUEM FOI VITTORIA COLONNA, A MULHER QUE MICHELÂNGELO AMOU?




No alto Renascimento houve uma mulher sensível, culta, fascinante e, a um só tempo, serena e entusiasmada, reconhecida como a mais eminente poetisa do quinhentismo italiano, o seu nome: Vittoria Colonna.
Nascida no seio de uma família principesca no ano de 1492, os seus pais providenciaram para que a pequena nobre recebesse a mais esmerada instrução, tendo sido educada em humanidades e em letras clássicas, além de talhada com as mais altas virtudes morais.
Cresceu no Castelo de Ischia em Napoli que vinha a ser o epicentro da efervescência cultural aragonesa. Aos 16 anos de idade contrai bodas com Francesco Ferrante, Marquês de Pescara, de quem obtém o mesmo título nobiliárquico. Apesar de haver sido um casamento arranjado como sói eram os casamentos da nobreza, Vittoria, agora, Marquesa de Pescara, apaixona-se fervorosamente por seu esposo a quem perde prematuramente em uma batalha.
Uma vez viúva, recolhe-se durante três anos no Convento das Clarissas onde aperfeiçoa os seus estudos teológicos e filosóficos, além de dar continuidade a uma produção poética profícua. Voltando à vida secular, passa a ser uma promotora e irradiadora das letras e das artes. Transforma o Castelo de Ischia em uma corte intelectual refinada, frequentada pelos maiores nomes de seu tempo. A ela, o grande Lodovico Ariosto dedicou versos em sua obra "Orlando, o Furioso", descrevendo-a como "nata fra le vittorie" e enaltecendo-a não apenas como a maior poetisa de seu tempo, mas irmanando-a às mais célebres mulheres da mitologia e da antiguidade.
Trocou poemas com os maiores escritores da Europa dos quinhentos como Pietro Bembo, Iacopo Sanazzaro e o português Sá de Miranda a quem acolheu na Itália por seis anos, sendo celebrada e aclamada por todos eles.
Posteriormente, fugindo da Peste Negra, transfere-se para Roma, estreitando amizade com o Cardeal Bembo e frequentando o Papado. Foi quando, então, conheceu Michelângelo, estando este em torno dos 60 anos de idade e prestes a pintar o Juízo Final na parede do altar da Capela Sistina. Por seu lado, tinha Vittoria Colonna, 46 anos de idade, estando ambos, portanto, no auge da maturidade intelectual e espiritual.
Travaram uma relação intensa, um vínculo forte e de profundo afeto por mais de 10 anos. Finalmente, Michelângelo encontrou aquela com quem podia dividir suas dúvidas e angústias, confessar os seus tormentos, além de compartilhar de seus maiores prazeres como a poesia e a teologia. Na serenidade da Marquesa, acalmava os seus tumultos e sentia-se estimulado por seu brilho intelectual. Se ele era um homem renascentista por excelência, em Vittoria encontrara a sua correspondente no feminino.
Vittoria era a síntese da católica neoplatônica, conjugando o cristianismo com o platonismo, participando ativamente dos debates culturais e teológicos sobre a Reforma e a Contrarreforma da Igreja, nos quais posicionava-se a favor de uma maior abertura e diálogo com as teorias luteranas. Em razão de sua postura emancipatória, a Inquisição preparava um processo no qual a acusava de heresia, estando em franca produção de provas contra a Poetisa.
No entanto, antes que as malhas inquisitoriais a alcançassem, Vittoria Colonna caiu gravemente enferma, recolhendo-se a um Mosteiro.
Após longa agonia, morreu no dia 25 de fevereiro de 1547, nos braços desesperados de Michelângelo Buonarroti. Seus restos mortais nunca foram encontrados.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

 "NÃO ESTOU NO LUGAR CERTO - EU NÃO SOU UM PINTOR!"

(MICHELÂNGELO BUONARROTI)




"Já ganhei bócio com esta tortura,
curvado aqui como um gato na Lombardia
(ou em qualquer outro lugar onde há veneno na água estagnada).
Meu estômago está esmagado sob meu queixo,
minha barba está apontando para o céu,
meu cérebro está esmagado em um caixão,
meu peito torce como o de uma harpa.
Minhas pinceladas,
acima de mim, o tempo todo, pingando tinta
então meu rosto dá um bom piso para excrementos!
Minhas ancas estão apertando minhas entranhas,
minha pobre bunda se esforça para funcionar como um contrapeso,
cada gesto que faço é cego e sem objetivo.
Minha pele fica solta abaixo de mim,
minha espinha
toda amarrada de se dobrar sobre si mesma.
Estou tenso como um arco sírio.
Porque estou preso assim, meus pensamentos
são loucas e pérfidas tripas:
qualquer um atira feio através de uma zarabatana torta.
Minha pintura está morta.
Defenda isso para mim, Giovanni, proteja minha honra!
Não estou no lugar certo - Eu não sou um pintor!"
(Carta-poema desesperada de Michelangelo Buonarroti para Giovanni de Pistoia quando o artista estava pintando a abóbada da Capela Sistina em1509).
*
Ilustração: a Punição de Aman - Detalhe da Capela Sistina (Michelângelo Buonarroti)