segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Quando Setembro Chegar
                       Andrea Campos



Quando setembro chegar,
colherei flores azuis,
azuis da cor do mar.

Com um adorno de pétalas
enfeitarei teus pés
e vestida de anis
brincarei com o teu olhar.

Quando setembro chegar,
guiarei teus passos
por entre a névoa
e aquecerei teu rosto
com o hálito das borboletas.

De mim brotarão virgens ninfetas,
translúcidas, salivantes
a saciarem teus desejos outonais.

Quando setembro chegar,
em ti plantarei asas de vento,
serás mais veloz
que o pensamento,
livre para ser só paz.

E, então, te envolverei
com braços de primavera
e te farei adormecer
numa quimera
de tempos
que não voltam mais.

Como uma alquimista,
tornarei tua pele ar,
volátil para jamais me amar,

Ir esquecendo-me aos poucos
até nos perdermos de loucos
quando setembro chegar.



sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O incesto na literatura. 

Pra mim, um dos temas mais trágicos e devastadores da experiência humana e de difícil tratamento literário: o incesto. Já me arrisquei a abordar o tema em um conto pela via erótico-trágica. E o que eu queria de meu leitor era que ele despencasse junto com a narrativa, sustentando-se, tão somente, em minha palavra e do conto saísse perplexo e forte como um sobrevivente, que é o que eu acredito ser todos aqueles que já foram vítimas da passagem ao ato incestuoso. Ainda mais se for em uma situação de abuso sexual. Mas, há duas obras específicas que me encantam por injetarem doçura à tragicidade incestuosa, despertando-nos, inclusive, a compaixão e o lamento por aqueles que se perderam nesse labirinto. Não há abusos, mas paixões que são trágicas por serem interditadas, impossibilitadas de realização. São elas "Lavoura Arcaica" de Raduan Nassar e "A Casa do Incesto" de Anaïs Nïn, ambas tratam, entre outros temas, de incesto entre irmãos. Arrisque-se nesses textos se puder... 



                                                       LAVOURA ARCAICA (trecho)
                                                                                 Raduan Nassar


"Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome" explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, "era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos" gritei de boca escancarada, expondo a textura da minha língua exuberante, indiferente ao guardião escondido entre meus dentes, espargindo coágulos de sangue, liberando a palavra de nojo trancada sempre em silêncio, "era eu o irmão acometido, eu, o irmão exasperado, eu, o irmão de cheiro virulento, eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do demo" (...)






A CASA DO INCESTO (trecho)
                               Anaïs Nïn


Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projetada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.









Mon Jardin Secret
                   Andrea Campos

Mon jardin secret est la douleur
qui se tait,
l'absurde sans regret,
c'est la magie du coeur.

Mon jardin secret est une planète                        

à l'allure de comète,
l'ambiance de fête,
l'espoir où je le mets.

C'est la foi sans doute,
la courbe d'une route,
la peur qui s'en fout.

C'est plus de oui que de non,
c'est le sourire ton sur ton.
Ce qu'ils rêvent
et ce qu'ils font.

Mon jardin secret
est une forêt 
jusqu'au fond,
où j'habite
et  dis ton nom.



                                                                 Si vous me voyez
                                                                                    Andrea Campos


Si vous me voyez
je suis la feuille vive
qui tombe sur le tapis
de feu d'automne,

Je suis l'après-midi
avec ses cheveux blondes.

Si vous me voyez,
je suis la sainte ronde,
je suis la mérétrice avec                                                  
se ventre inféconde,
la folle qui cri le vers
le plus profonde.

Vos yeux m'allument,

Si vous me voyez,
c'est  dans moi que brûle
l'inconscient du monde.

                                                               Três Sonetos
                                                                               Andrea Campos

I.


A te amar a ti na noite imensa                                       
E aprender o amor como ternura,
Inventei em mim tua presença,
Acendendo a luz da lua escura.

Invadindo em mim tanta querência
A cortar o medo com uma fissura
Deixamos ao tempo a incumbência
De lançar a sorte com doçura.

Temperando amor ao desejo,
Gozo em nós sem nenhuma distinção
Como  o que eu vejo e o que eu não vejo,

O que é  real ou é  ilusão.
Assim é o nosso amor de alma pura
E carne que incendeia na loucura.





II.

Vem, meu amor, que a tarde é fria
E bailam ao longe as boninas,
Já não vestimos a fantasia
De outros tempos e esquinas.

Mas ainda me tens tão tua,
Doce, melancólica e lassa
Como a paixão se estende nua                                    
Por primeira vez e não passa.

Vem que ainda há verão nos campos
E pra trás ficaram nossos prantos,
Toma os meus olhos como guia

Na trilha do amor que  desafia.
Gira-te em mim ao estarmos sós
como giram ao sol os girassóis.











III.

Banhada em luz na hora ardente
eu te compus como semente
de um amor total e transviado,
onde fui guerreira e tu soldado.

Entre trincheiras da batalha
Das esperanças fui  mortalha
Até encontrar teu olhar tristonho
e nele aguar, de novo, o sonho.

De tua ferida lambi a dor,
E a tua pele molhei de cor
Para que a vida renascesse

De onde nada mais lhe cresse.

Selada a paz fui amor e amante
que vive e ama a cada instante.




domingo, 23 de agosto de 2015

                                                                                         No Trem 
                                              (em torno do Conto "A Partida do Trem" de Clarice Lispector)
                                                                                                                       Andrea Campos




Menino, eu nem te conto quem eu encontrei ontem! Você não vai acreditar! Ângela Pralini! Sim, era ela! Com todas as suas letras, inspirações e expirações: e-l-a! Sabe, devo confessar que nunca fui nenhuma clarisófila, muito pelo contrário! Fui mocinha precipício em vertigem abismal constante, forjada em vácuos, equilibrando-me pelas bordas. Não, eu não correria o risco de lê-la. Nenhuma mão pra me salvar, só eu, eu só solta, à deriva, empurrada ao instante pra o fundo do nada. Mas, ela estava lá, Ângela Pralini, com todas as letras envolta nas letras de um conto intitulado "Partida do Trem". Não, aquele livro não poderia ser meu, estava ali por engano, alguém o havia deixado naquela minha estante da casa avoenga. Corri os olhos para a sua folha de rosto e, perplexa, li meu nome ali escrito com todas as letras. Garrafais. Caí em uma armadilha? Abaixo de meu nome, a cidade e a data: vinte e seis de junho de mil novecentos e noventa e três. Essa data existe? Sim, eu era mesmo uma mocinha e como todas as mocinhas, em algum momento... transgredi? Fui de encontro aos meus princípios? Li o que não queria, li o que não devia? Não importa. O crime estava feito. E perfeito. Nenhum rastro de minha leitura, eu que sou uma contumaz rabiscadora, anotadora e desvirtuadora do texto alheio. O livro estava sem máculas, não deflorado. Talvez eu tenha praticado, tão apenas, os atos preparatórios de meu ilícito. Pela integridade do livro, abandonado, tão somente, aos fungos, convenci-me de que, de fato, eu nunca estivera lá. Olhei a sua capa que não parava de me perguntar "Onde estivestes esta noite?". Ora, ora, não precisa me chamar por "vós", pode me chamar de "você", no máximo, por "tu"!


Em mocinha, encantei-me por trens, por viajar de trem. O meu primeiro conto, iniciava-se com uma senhora viajando num trem, revivendo o seu passado. No sumário dos contos do livro improvável, pois sim, se não falei, tratava-se de um livro de contos, enxerguei logo um conto meu conhecido "É pra lá que eu vou". Decidi que não seria pra lá que eu iria, pra lá pra onde já fui tantas vezes, pra lá onde já foram tantos os reveses, pra lá onde já estou anoitecida. Atraiu-me, então, um outro título "Partida do Trem". Pensei "é pra lá que eu vou!". Comecei a leitura e lá estava ela: Ângela Pralini. Eu já suspeitava que ela fosse o alter-ego dela. Logo dela que eu sempre evitei e tive medo, que eu nunca quis espreitar na porta entreaberta. De repente, fiquei apavorada. Será que ela apareceu ali pra mim de propósito como uma assombração, pronta pra puxar meu pé enquanto eu dormia pra o seu texto? Um pouco mais adiante, nos trilhos do conto, ela dizia que havia tentado ler Ulisses de Joyce, mas que abandonara o livro porque o achara muito chato. Oh, céus, porque ela vem falar justamente sobre o livro que eu estou lendo? Sobre o livro que achei, inclusive, próximo da angústia e das cores dela? E ela não pode negar a sua influência, porque o nome de seu cachorro é Ulisses! Se bem que pode ser o Ulisses de Homero e não o Ulisses de Joyce... Mas é Ulisses, esse cão todo dela em toda a sua humanidade canina... Tergiversei.



Finalmente, estávamos nós duas em um vagão de trem, saindo de viagem por sobre os nossos próprios trilhos... Quer dizer, nós duas, não, nós três! Dona Maria Rita também estava lá. Dona Maria Rita: o nosso amanhã e o nosso futuro. Dona Maria Rita, uma velhinha digna. Não, dona Maria Rita, a senhora não é velha! Eu é que estou pra lá de antes da pré-história, quando sequer havia a escrita! Dona Maria Rita, a senhora é jovem, juveníssima! Eu é que sou antiga, tudo que me acontece é o já acontecido, eu já nem sei se caibo em qualquer acontecimento, de tão já acontecida que sou... Dona Maria Rita, a senhora, braços largos, viaja em direção a um abraço. Abraço pra mim é luta e espanto, eu que sou do tempo em que sequer se ficava sobre os dois pés. Eu a primata, a selvagem, em grunhidos, sem voz. A senhora é o futuro, dona Maria Rita, regozige-se! Pobre de mim que de tão vencida em priscas eras, não conheci as letras e, nem ao menos, sei escrever seu nome, dona Maria Rita...



Partimos todas. Partimos juntas. Ângela Pralini fugindo de um amor chamado Eduardo. Eu até já tive um amor, ou tenho, não sei bem ao certo, um amor chamado Eduardo. Mas eu nunca o chamei... O trem começa a balançar. O corpo levemente se excita. Umedeço... Como eu já conhecia Ângela e o seu destino, senti-me mais segura de estar com ela. Sei de cor seus sopros e pulsações. Sei o que se passará em todas as próximas suas curvas, em suas linhas retas, escorregadias. Olhei pra ela como dona da situação, senhora de seus domínios. Não, em mil novecentos e noventa e três eu não poderia ler esse conto, estar ali com ela, eu que era forjada em vácuos. Mas, agora que sou mulher transvivida, insubmissa e independente, olho pra ela, inclusive, com compaixão, pois é ela, agora, a mocinha mais nova, vulnerável e indefesa. Fico até pensando do alto de minha força "oh, o que eu poderia fazer por você, Ângela Pralini?". Nesses devaneios, cabeça inclinada sobre a cortina da janela do trem, docemente, adormeço. O trem pára em uma estação, acordo num súbito e em sobressalto vejo que Ângela Pralini não mais está lá em seu assento. Não, não é possível, será que ela foi embora?! A sua valise e o seu casaco também não estão na maleteira!  Sim ela partira... Eu sabia, eu sabia, desde sempre eu sabia que eu não poderia correr o risco! Eu que confiei, confiei, confiei nela e adormeci! Minha garganta deu um nó. Minhas lágrimas congelaram empedernidas em meus olhos antes que ousassem cair. Apenas à minha frente, restava dona Maria Rita em sono profundo, inamovível. O trem deu um solavanco de partida, quase caí pra frente, sem ter nenhuma mão e nada em que me segurar. Derrapei pelas bordas do vácuo abismando em vertigem num desmaio que se anunciava. Mas antes de atingir o rés do chão, num acesso de mim, alcei as  mãos para dentro do sono de dona Maria Rita, segurei com avidez o seu sonho e sobre ele, com as mãos ainda trêmulas, aprendi a escrever meu nome.











Nota: Ângela Pralini é a protagonista do último livro de Clarice Lispector, escrito às vésperas de sua morte "Um Sopro de Vida". Ontem, com surpresa, encontrei um livro de Clarice que comprei durante a minha adolescência e não li (eu não a lia). Com surpresa vi que a personagem Ângela Pralini era a protagonista do conto que escolhi pra ler "Partida do trem". Na minha interpretação do conto, Ângela (que vejo como um alter-ego de Clarice) abandona o seu dia de amanhã, ao abandonar dona Maria Rita dentro do trem (o trem da vida?) sem se despedir. De fato ela morreria (Clarice Lispector) apenas alguns anos depois da publicação do conto. Já o meu conto "No trem" trata de minha relação com Ângela e com a autora dentro e fora desse conto e aí, a história já é outra...


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sobre Elisabeth I, Clarice Lispector e Bertrand Russell... Ou melhor, sobre todos nós.
                                                                                                     Andrea Campos



"Todo o meu reino por um momento de tempo", teriam sido as últimas proverbiais palavras da rainha Elisabeth I da Inglaterra em seu instante  de morte. O tempo, esse para o qual nascemos, esse que, ao pensarmos que o  matamos, ao final, é ele que, machadianamente,  nos enterra. A vida do ser humano sobre a terra é um eterno jogo de xadrez, não com a morte, caro Bergman, mas, principalmente, com o tempo, se é que ambos no fundo não sejam o mesmo parceiro contra o qual jogamos.. Não é o tempo apenas um nosso constante objeto de anseio e desejo, refletidos nas últimas palavras da rainha Elisabeth I, confundindo-se com a própria vida, mas também uma nossa fonte primordial de angústia, e aqui, sem deixar de, também, confundir-se com ela.  Diante da leitura de reiteradas citações acerca do Conto "Amor" de Clarice Lispector, resolvi relê-lo integralmente, pois lembrava-me de ser apenas um factoide ocorrido a uma prosaica e quotidiana dona de casa. Claro que nada em Clarice é "apenas" e é sobre esse "apenas" que pretendo lançar algumas luzes. O Conto não se trata apenas de uma mulher a quem coube uma vida de mulher, casada, com filhos, com uma casa que, na maior parte do tempo não prescinde dela e nem ela prescinde da casa. Não é apenas sobre uma mulher sucumbida e conivente a um modelo patriarcal e machista que escamoteia o livre existir, o livre pensar e o livre amar. Não é apenas um conto sobre uma mulher que se angustia diante da hora perigosa da tarde, quando nada demanda por ela, e tudo está livre, inclusive, dela mesma para acontecer. Não é apenas sobre a culpa dessa mulher voluntariamente enquadrada diante dos acontecimentos que estão fora de seu quadrado tão cuidadosamente planejado e protegido. Acontecimentos contra os quais não apenas ela protege a si, mas inclusive aqueles que habitam a sua rede de proteção, tal como o seu marido a quem ela diz "Eu não quero que nada lhe aconteça" e de quem ela obtém a resposta "deixe que, ao menos, me aconteça de explodir uma panela". Não, não se trata apenas disso. Esse sentimento eu tive quando, ao ler o conto, identifiquei-me com a angústia de Ana, apesar de ser uma mulher  totalmente antitética a mim, pois que para matar a minha própria angústia diante da vida e do meu tempo, escolhi o caminho da independência e da liberdade diante das instituições, não aceitando desempenhar os papéis prognosticados como os de "uma vida de mulher". No entanto, o porquê dessa identificação com a angústia de Ana, uma mulher tão antitética a mim, clarificou-se hoje, ao ler um texto de Bertrand Russell "A Conquista da Felicidade"  a fim de, com ele, fundamentar uma peça jurídica trabalhista. Diz Russell "A maioria das pessoas que se vê livre para ocupar seu  tempo como quiser fica indecisa, sem que lhe ocorra a ideia de algo suficientemente agradável que valha à pena ser feito. E, qualquer que seja a decisão, aparece a desagradável sensação de que teria sido melhor fazer algo diferente. A capacidade de sabermos empregar de forma inteligente  nosso tempo livre é o último produto da civilização e, por enquanto, há poucas pessoas que alcançaram esse patamar [...] Quase todos os trabalhos proporcionam a satisfação de matar o tempo [...] e essa satisfação basta para que inclusive aquele que tem um trabalho aborrecido seja, a médio prazo, mais feliz do que aquele que não pode contar com isso". Ou seja, a minha angústia se irmana à angústia de Ana, à angústia da rainha Elisabeth I e à angústia da qual trata o grande Bertrand Russell, no que temos de humanamente universal e comum: a nossa angústia diante de nosso tempo de vida. E é sobre isso que também trata o texto de Clarice: a angústia que sentimos todos nós diante do tempo que dispomos. O que fazer com ele, à fim de não mergulharmos no abismo do sem sentido? Para não sermos abocanhados pelo tédio, pelo insignificado e pelo insignificante de nossas próprias vidas? Uns inventam para si uma vida totalmente enquadrada, aos moldes de Ana, personagem de Clarice, enquadramento social e comportamental esses que só são abalados com o imprevisível do amor. Outros, pelo caminho oposto, inventam para si uma vida de máxima  libertação dos padrões vigentes estabelecidos, ao procurar, na medida do possível, não se institucionalizar, seja a um casamento, seja a uma família, seja ao próprio Estado. O que ambos têm em comum é que estão a todo o tempo inventando aquilo que os ajuda a se manterem à deriva sobre o abismo, sem afundar. Em ambos os casos, seja no enquadramento, seja na libertação, tenta-se escapar de uma angústia diante do tempo e em ambos os casos, inclusive no primeiro, no qual arrodeia-se de marido e filhos corre-se sempre o risco de se cair na máxima  solidão, a solidão de não amar. Sendo, então, essa solidão não só um privilégio dos "presos",  isso porque os pretensos "libertos"  também têm o amor como um alto risco, o risco de perderem as suas liberdades, assim como os enquadrados o têm como um alto risco, o de perderem as regalias das quais gozam em suas prisões. Porque foi para uns, a liberdade, e para outros, a prisão, o que foi escolhido como forma de "matar" o tempo e evadir-se do nada e da solidão,  o que foi escolhido como via de arrefecer e proteger-se da angústia de existir. Onde habitará, então, a conquista da felicidade, título do texto de Russell, o qual eu ainda não terminei de ler? Arriscaria dizer que o espaço da felicidade seria tanto fora da prisão, como fora da total liberdade. O limite tanto para um como para o outro seria o início da náusea.  A náusea é o que sentimos quando experimentamos o tempo não como espaço de vida, mas como espaço de uma dolorosa vertigem. É fora da prisão e da liberdade nauseantes que encontramos o nosso melhor lugar: o lugar de nossa dignidade. E é só nele que não mais nos angustiamos com o nosso próprio tempo, mas lhe damos as  mãos. E é de mãos dadas com ele que, sem angústias, do alto de nossas dignidades que é o lugar onde não mentimos pra nós mesmos e somos inteiros, que seremos dignos  para viver e, sem medos, dignos de amor e de amar.




quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Lady Godiva
         Andrea Campos


Como uma Godiva
cavalguei teu sono,
pincelando sonho
na tua carne,
no torpor do desejo
fui verso tristonho
e em ti amanheci
quando já era tarde.

Montada em céu
na luz oblíqua,
qual serpentina
na madrugada,
teci o tempo
que se alucina,
fui tua menina,
demônio e fada.

Saltando em trote,
teu medo e gozo
arremessei
à minha garupa,
numa chibata
tocaste as nuvens,
noutra chibata,
a minha gruta.

Nesse delírio,
meu alazão
singrou tua pele
em mim tão nua
e selou a tinta
da ilusão
que o real fere
danada e crua.

Não sendo Godiva,
não sendo deusa,
não sendo lady,
não sendo dama,

sou a mulher
que te cavalga
e chama a chama
na tua cama.














terça-feira, 18 de agosto de 2015

                                                                              Esfinges
                                                                                      Andrea Campos


Se quiseres domar a vida,
aprende primeiro a domar esfinges.

Elas te rirão do alto do tempo
e do mistério
que serão para ti
sempre imperscrutáveis.

E sentirão pena de toda
a prepotência
de que necessitas
para sobreviver
à brevidade
de tua existência.

Mas se quiseres ser a vida
em tudo que sê-la
é belo e trágico,

lança abaixo os chicotes
de todo o teu desespero,
beija a fera que te fere
em teu maior pesadelo.

E nas esfinges vão surgir,
das asas do leão,
mãos que te enlaçarão
num abraço infinito.


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

                         Brasil.
                             Andrea Campos


Fruto não de um amor sincero,
mas de um encontro casual,
ambição da nobreza e clero
conduzida por Cabral.

Relegado como indigente
por não teres as 
partes pudicas,
nadaste contra
essas gentes,
seviciado
pelas mais ricas.

De início eras
a  Cruz,
fosse Vera, 
fosse Santa,
num calvário
de ferida, 
morte e vida,
dor e pus,
não compreendeste
pelo espelho
tua face e corpos
nus.

Liberto pela própria
natureza,
cantado
por tua impávida
beleza
foste, enfim,
condenado
por teu codinome
verdeazulvaronil,
madeira que a muitos
locupleta e
a outros mata de fome.

Será preciso mudar 
teu nome
pra não sucumbires
ao que é vil,
pra não seres 
o que se rouba,
o que se oferta
e se consome
espoliado Pau-Brasil?











sexta-feira, 14 de agosto de 2015

                                                     Versos à Margem
                                                                    Andrea Campos







Partilha

Luz mascarada,
breu.
Tez eriçada,
teu.
Céu, pó de estrada,
meu.
Resfolegante,
teu.
Lua minguante,
meu.
Iridescentes,
teu.
Mel entre os dentes,
meu.
Suor de essências,
teu.
Luminescências,
meu.
Bruxuleante
breu.
Na tua cama,
eu.




Ressaca

Como se o amor tremesse em sombras,              
em cada fresta de luz, um arrepio.
Ardências correm cintilantes
margeando os rios
que voltam e desembocam em suas fontes.

A ausência de teu corpo
é um mar vazio.












Sinalagma

Na tua sede, a minha água,
No meu suspiro, a tua calma.

No teu Atlântico, o meu Índico,
No teu adágio, o meu cântico.

Na tua palavra, a que nos salva,
No meu abismo, a lua alva.

No nosso olhar a luz da malva,

Na tua carne, a minha carne,
Na boca um grito... e nasce a alma.




Vácuo

Sem você
meu verso é branco.

O meu poema
apenas uma pilha
de palavras partidas.

Partem-me as letras,
cedilhas de sangue,
escorro...

A sua ausência é uma
janela sem trincas,
olhares sem rimas,
uma mão retalhada...

E eu me abro
pra o nada.




Água e Sol


Era em pedaços de sol
que ele se trazia à minha boca
até que eu mastigasse inteira
o seu sabor amarelo...

Hirta e tesa
como os seus raios,
de fome de luz
meus desejos
se acendiam e
eram lacaios...

Era quando o
dia partia
e eu subia
em gotas
à penedia para
engolir estrelas.

Mas, vestida de sol,
a não conseguir vê-las,
sibilante, ele me punha
aos braços e
embalava-me
os sonhos
de água e sal.

E molhando a sua boca
na minha,
ao seu sabor amarelo
eu misturava
o meu sabor
de cristal.





segunda-feira, 10 de agosto de 2015

De Dante a James Joyce, do séc. XIII ao séc. XX, dos primórdios ao além do tempo, é sempre o amor de uma mulher que salva um homem e o leva aos céus...rs E quem está dizendo isso são os próprios homens, o que se há de fazer?rs




"Ó dama em quem minha esperança vive,
e que, por mim, no Inferno até inscreveste
o rastro teu quando eu perdido estive;

por tantas coisas que me ofereceste
conhecer, por tua força, tua bondade,
graça e valor a agradecer sou preste.

De servo me hás trazido à liberdade,
por todo modo e por toda via
a que bastasse a tua potestade.

Em mim teu alto influxo custodia,
pra que minha alma, que tu alçaste avante,
ao desprender-se ainda te sorria."

Dante Alighieri in A Divina Comédia - Paraíso, Canto XXXI



"Feio e fútil: pescoço mirrado e cabeleira emaranhada e um borrão de tinta, baba de caracol. Mas alguém o amara, o aconchegara aos braços e no seu coração dela. Não fora ela o tropel do mundo o houvera esmagado aos pés, esborrachado caracol desossado. Ela havia amado seu fraco sangue aguado sorvido do dela mesma. Era isso então real? A só coisa verdadeira na vida? (...) ela já não era: o esqueleto tremente de uma vergôntea queimada ao fogo, um odor de pau-rosa e cinzas molhadas. Ela o salvara de ser pisoteado e se fora, mal e mal tendo sido. Uma pobre alma ida para os céus: e por sobre um terrunho por sob estrelas piscantes uma raposa, fartum rubro de rapina na pele, com brilhosos olhos impiedosos, raspava a terra, escutava, levantava terra, escutava, raspava e raspava."

James Joyce in Ulisses, pág. 35, Ed. Civilização Brasileira, 2015.




                                   A Divina Comédia - Paraíso (trecho final)
                                                                   Dante Alighieri


Emocionei-me muito com a leitura dos três tomos de A Divina Comédia de Dante Alighieri. Tanto que terminada a leitura, passei um tempo digerindo-a até vir comentá-la aqui. Li o Inferno e o Purgatório de um chofre, durante dois dias inteiros cada um, como se estivesse ansiosa por conhecê-los e vencê-los. Não fui diretamente ao Paraíso, pra dizer a verdade pensava até em não lê-lo, justifiquei-me por achar que lá encontraria o marasmo. Depois percebi que o que me refreava "subir" ao Paraíso era esse, ao menos meu, sempiterno sentimento de não merecimento (o vocabulário dantesco, verdadeiras pedras nos caminhos iniciais da leitura de sua obra, agora brotam de mim espontaneamente, ou seja, como cada autor que lemos, ele já está falando em mim rs). Foi quando aceitei altear-me aos céus junto a Dante, sentindo fulgurações, resplandescências e cores. E, sobretudo, sentindo amor, muito amor. 

Obrigada Dante, não sei se existe o seu Paraíso, mas sei que existe o Amor e é uma substancial porção dele que você tem nos dado em sua Comédia imorredoura através dos séculos. Arrivederci.


CANTO XXXIII (trecho final - Dante é agraciado com a visão de Deus)

tal estava eu ante a nova visão:
buscava a imagem sua corresponder
ao círculo, e lhe achar sua posição.

Mas não tinha o meu voo um tal poder;
até que minha mente foi ferida
por um fulgor que cumpriu Seu querer.

À fantasia foi-me a intenção vencida;
mas já a minha ânsia, e a vontade, volvê-las
fazia, qual roda igualmente movida,

o Amor que move o Sol e as mais estrelas.

Fim


tal era io a quella vista nova:
veder voleva come si convenne
l'amago al cerchio e come vi s'indova;

ma non eran da ciò le proprie penne:
se non che la mia mente fu percossa
da un fulgore in che sua voglia venne.

A l'alta fantasia qui mancò possa;
ma già volgeva il mio disio e 'l uxelle,
sí come rota ch'igualmente è mossa,

l'amor che move il sole e l'altre stelle.

Fine

Dante Alighieri, Ravenna, 1320 Anno Domini





sábado, 8 de agosto de 2015

A Divina Comédia - Paraíso
                    Dante Alighieri


(O trisavô de Dante, Cacciaguida, faz profecias sobre o seu futuro exílio)


CANTO XVIII (trecho)


Como Hipólito teve de fugir
Atenas, por madrasta malfazeja,
tu de Florença deverás partir.

Isso se quer e isso é o que lá se enseja
e isso logo terá quem ora o pensa,
onde Cristo, dia a dia, se mercadeja.

A culpa estará co' a parte ofensa,
como sói suceder, mas a vingança
fará testigo ao Vero que a dispensa.

De teus mais caros bens a aventurança
tu perderás, e essa é a flecha fatal
que, de primeiro, o arco do exílio lança.


Dante no exílio - Pintor anônimo




Dante tinha um protagonismo político em Florença, tendo chegado ao posto de um dos seis priores do Conselho, uma espécie de prefeito. Havia, à época, dois partidos, o  partido dos Gibelinos que eram os partidários do Imperador, e o partido dos Guelfos, os partidários do Papa. Os Guelfos que detinham a quase totalidade do poder em Florença subdividiam-se em "Brancos" que se opunham à interferência do papado no poder temporal e em "Negros" que apoiavam a ingerência do Papa nos assuntos seculares, assim como o seu papel de "conter" as ações do Imperador. Dante era do partido dos Brancos. Havendo o então Papa, Bonifácio VIII, auxiliado os Negros a tomarem posse da cidade, muitos Brancos foram condenados ao exílio, inclusive, Dante que foi, injustamente, acusado de corrupção e chamado a pagar uma multa, pena essa que ele se recusou a cumprir (é isso aí Dante! Cabeça erguida!). Dante passou vinte anos no exílio, dez dos quais ele escreveu a sua Commedia. Devido ao grande prestígio que lhe conferiu a sua maior obra, Dante pensou que as portas de Florença lhes seriam reabertas, ainda mais com a morte do Papa Bonifácio VIII. Dante faleceu, logo após publicar o Paraíso, sem sequer fazer a revisão pretendida de toda Commedia. Acho que morreu de desgosto. E isso me deixa triste...