sábado, 17 de abril de 2021

 MÃE É MÃE?




Inobstante o horror despertado pelo crime bárbaro e medonho praticado pelo vereador bolsonarista ligado às milícias, defensor da família e contra uma propalada "ideologia de gênero", o antimédico "Dr. Jairinho", o desamor de sua companheira por seu próprio filho, ou melhor, pouco amor, sobrelevando-se seus interesses materiais e ambições sociais, tem chocado tanto ou até mais do que a morte da criança em si.
A sacralização do amor materno é um fenômeno recente, pós-era industrial. Nas sociedades pré-capitalistas, as crianças eram entregues a mulheres, geralmente, camponesas, para que as amamentassem e as fizessem vingar em seus primeiros anos. O próprio Santo Agostinho dizia ser as crianças o que havia de mais próximo ao pecado original, o seu sintoma e expressão mais diretos. Crescer e ser educado, significaria ser purificado e catequisado em um movimento contrário àquele prognosticado por Jean-Jacques Rousseau.
Quando não afastadas das mães na distância de muitos horizontes, as crianças, no mais das vezes, eram criadas por uma família estendida. Na medida em que a sociedade se aburguesou e o capitalismo avançou, as famílias se tornaram mais e mais nucleares, restritas a um casal e os seus filhos. Se o pai deveria, desde sempre, ser o provedor material, as responsabilidades com a criação, cuidados e educação das crianças concentraram-se na figura materna que, por sua vez, sacralizou-se, valorizou-se, naturalizou-se a fim de que as mulheres assumissem esse mister com resignação e até mesmo, passassem a ambicionar assumi-lo a fim de angariar respeito social e, também, poder.
Diversamente de uma sociedade de viés comunitário, com a presença de um Estado social no qual a função materna é desconcentrada da figura exclusiva de uma mãe, quanto mais uma sociedade é neoliberal e o Estado é mínimo, mais central e estruturante é o lugar da mãe e a sua função social. O efeito perverso ocorre quando essa mãe forjada em uma ambiência neoliberal de materialismo predatório enxerga na criança, não uma fonte de exercício de poder e autovalorização, mas de empecilho no seu afã de galgar status e alargar as suas possibilidades de consumo. Mais ainda se esse poder aquisitivo e ascensão social são possibilitados não pelo pai da criança, mas por um outro homem. A partir desse ponto dramático e perverso de inflexão, a criança passa a ser um estorvo, não mais causa de exercício de poder , o poder conferido pela maternidade.
Antes de, simplesmente, patologizarmos uma mulher como a Monique, devemos reconhecer que "mãe, não necessariamente, é mãe", aquela do amor incondicional, e que ser mãe, historicamente, foi ambicionado pelas mulheres menos em razão de amor do que por aquisição de poder. Mais ainda quando se trata de dar filhos e descendência a um homem de poder e posses. Em uma história humana na qual o exercício de poder feminino sempre foi residual, acentue-se. Isso, claro, não justifica uma mãe ser conivente com a morte e a destruição de seu próprio filho, mas é o paroxismo dessa lógica. Que o digam as mulheres e concubinas dos Faraós. Que o digam as mulheres que acompanhamos diariamente, as que silenciam os abusos sofridos por seus filhos e filhas a fim de manterem ao seu lado um homem e as benesses por este propiciadas.
Aceitam-se desamor e abandono de pai, mas sem a segurança de um eventual "natural e sagrado amor de mãe", a sociedade se desestabiliza. Ainda mais naquelas onde há pouca presença do Estado oferecendo os bens públicos (saúde, cuidados e educação), pois nesses casos, como já falamos, a mãe substitui o Estado e se a mãe falta, a estrutura social desmorona.
O que causa terror nessa história macabra, portanto, não se restringe à atrocidade cometida pelo vereador, e a dor que sentimos pela vida interrompida de uma criança linda, carinhosa e cheia de vida.
O que nos causa ainda mais pavor´é testemunharmos uma mulher que por mais que amasse o seu filho, não o tinha como uma prioridade. Uma mulher que arriscou a morte de seu filho e a sua própria morte como mãe a fim de satisfazer as suas ânsias de status e de poder quando, para ela, ser mãe não era suficientemente sagrado nem meio para satisfazer as suas ambições (eis um dos efeitos perversos do neoliberalismo).
O que nos amedronta é que uma mulher arriscar a morte de seu filho e a sua morte como mãe, anuncia a nossa própria morte como sociedade.
*
Pintura: Michelângelo. Detalhe da cena do "Dilúvio" no forro da Capela Sistina.

sábado, 10 de abril de 2021

 É tempo das malsãs

De latir a besta-fera.
Mas também,
É tempo das maçãs
E é tempo de espera.



*
Pintura de Alice Neel.

sábado, 3 de abril de 2021

 AS PIETÀS DE MICHELÂNGELO, OU MELHOR DIZENDO "AS MÃES DE MICHELÂNGELO".


                                                                        Pietà-Vaticano



                                                                        Pietà-Bandini


                                                                Pietà-Rondanini


Certa feita, um crítico de arte, muito versado em seu ofício, aduziu que Michelângelo pouco sabia representar o feminino maternal em sua arte, uma vez que não tivera mãe. Ora, não ter mãe, também é uma forma de tê-la. A ausência tem carne e tem cheiro, e no desejo do sujeito será corporificada. E que não se diga que Michelângelo não teve carnal presença de mãe. Teve-a, ainda que por tempo pouco.
E o nosso escultor "divino", tão cantado e decantado por suas belas e contorcidas e viris e vigorosas representações masculinas, conhecia do lugar central que o feminino ocupava em sua arte.
Melhor dizendo, concebia-o como pressuposto de todos os demais.
Não foram poucas as vezes que, reincidentemente, no decorrer de sua vida, Michelângelo disse e redisse que a razão de ter se tornado um escultor e de sentir profunda paixão pelo mármore, devia-se ao fato de que fora amamentado por uma senhora que vinha a ser esposa de um marmoeiro. Nas mamadas, o leite viria misturado e condimentado pelo pó do mármore, semente do seu amor ad eternum por essa pedra.
Pois bem, quatro séculos antes que sobre o mundo houvesse Freud, havia Michelângelo e o determinismo que esse prestava ao seio materno para o que lhe constituiu enquanto ser na vida.
Mas, voltemos ao escultor Michelângelo e às aludidas críticas de que esse havia mal representado o materno em sua arte pela sua falta de mãe e, por consequência, por pouco ter sido filho. Já rebati essa crítica com o argumento de que mesmo os que não têm mãe, tem-na em sua forma ausente.
E vou além, há uma presença incontornável e irrecorrível da maternidade na constituição do sujeito: O pó do qual viemos e para o qual voltamos, nada mais é do que o pó da terrra, da Terra-Mãe. Essa Terra-Mãe para os humanos tem o desenho de um útero e uma vez dele brotados serão regados e vingados em suas singularidades por seus seios-fontes. A morte, então, seria um retorno ao ventre dessa terra, à sua carne esférica. A morte seria a volta à unidade com a mãe. Na morte, o filho funde-se com a sua mãe, é dado de volta à terra, e o ser singularizado é inaugurado na sua universalidade existencial.
E esse ciclo existencial é belamente representado por Michelângelo em suas Pietàs: pela Pietà Vaticano, pela Pietà Bandini e pela Pietà Rondanini, às quais eu diria serem suas representações maternas em três momentos fulcrais de sua vida. E o que é ainda melhor: Representações esculpidas pelo pó da Terra.
Tendo sido amamentado por uma ama de leite, mulher de um marmoeiro, Michelângelo, de fato, teve pouco convívio com a mãe que lhe gerara, mãe que padecia de fraquezas e enfermidades. Ao retornar à casa familiar aos três anos de idade, conviveria com a sua mãe por tão somente mais três anos, quando ela então faleceria contando com menos de trinta anos, uma mulher bem jovem, portanto.
A imagem que uma criança de três a seis anos de idade tem de sua mãe, não importa a sua estatura, é o de uma mulher imensa e poderosa, no colo da qual a criança encontra o máximo abrigo, amparo e proteção. Para a criança em sua primeira infância, a mãe é um colosso, um gigante em todos os sentidos, físicos e afetivos e no alto de sua potência, hasteia-se a sua face jovem, de máxima ternura e amor. Foi durante a sua primeira infância que a mãe de Michelângelo partiu sem volta.
E não seria essa mãe da primeira infância, imensa, poderosa e jovial, a recolher o seu filho vulnerável e diminuto entre as suas vestes que estaria representada na Pietà Vaticano? Às críticas que desde então recaíram sobre a jovialidade das feições da Pietà, Michelângelo respondera que a razão seria a de que uma santa não envelheceria e a de que ali estaria representada a filha do seu Filho. Ao argumento de Michelângelo, eu gostaria de somar algo novo: Não poderíamos dizer que a mãe-Pietà é ali representada como uma mulher jovem, principalmente, por jovem ter sido a mãe que Michelângelo conhecera? E sim, essa mãe-Pietà, de fato, era filha de seu filho, era uma mãe esculpida por seu filho-pai Michelãngelo. E sobre o seu colo, o escultor-menino naufragava morto. Morto e desacudido o filho por lhe ter morrido a mãe.
A forma piramidal na qual todo o conjunto escultórico, mãe e filho, foram esculpidos também tem as suas razões. Com a morte de sua mãe, morto ele também estará em sua condição de filho. E não é a pirâmide o símbolo dos grandes túmulos? A Pietà-Vaticano foi esculpida quando o jovem Michelângelo tinha 23 anos de idade. Quando ele ainda se sentiria pequeno e frágil diante da vida, e a sua mãe, que ainda que morta o amparava, de um tamanho maior que o mundo.
Passemos agora para a segunda grande Pietà esculpida por Michelângelo, a Pietá Bandini e a compreendamos também como uma representação materna feita pelo escultor-filho.
Quando de sua execução, Michelângelo passara dos seus setenta anos de idade e acreditava estar próximo à sua morte. Era já um escultor renomado, festejado em toda a Europa. A nova Pietà teria por destinação a sua própria tumba que ficaria na Basílica de Santa Maria Maior em Roma. Trata-se de um conjunto com quatro personagens: Nossa Senhora, o Cristo morto, Maria Madalena e pairando sobre os três, observando tudo, Nicodemos.
Nessa Pietà, diversamente da Pietà Vaticano, mãe e filho estão concebidos nas mesmas proporções e na mesma altura. O filho Michelângelo parece ter atingido a mesma envergadura de sua representação materna e mais: Está fundindo-se com ela. Se a escultura estava sendo concebida para adornar a sua própria sepultura, não estaria nesse gesto uma metáfora perfeita da morte enquanto retorno à mãe? Enquanto volta à terra? Enquanto fusão e dissolução no todo universal representado pelo corpo materno? Pois é assim e desse modo que mãe e filho estão representados na Pietà Bandini. A mãe, não mais é uma gigante de feições plácidas e joviais, nem o filho uma criança desprotegida como na Pietà Vaticano. Ambos são adultos e maduros, tatuados pelas angústias e glórias da existência. Estão em um mesmo patamar participando dessa derradeira fusão, engravidando-se um do outro em um mesmo pó, em uma mesma pedra, em uma mesma terra. Não sem motivo, o conjunto também foi esculpido em forma piramidal, recorrendo, novamente, às formas dos túmulos egípcios.
Curiosamente, na Pietà Bandini, Michelângelo esculpiu a sua face no semblante de Nicodemos. Como se assim ele pudesse assistir à sua propria morte e à sua "refusão" com a sua mãe... Conta-se que antes de dar essa escultura por concluída, Michelângelo teria tentado destruí-la. Um arroubo de recusa à morte, de recusa ao retorno à Mãe-Terra?
Terminada a escultura que por fim nem foi postada por sobre a sua sepultura, muito menos repousa em Roma, estando hoje no Museu da Catedral de Santa Maria del Fiori em Florença, Michelângelo que já se tinha por um dos números dentre o número de mortos, ainda viveria por mais de dez anos... E por mais outras esculturas...
Chegamos, então, à última Pietá esculpida por Michelãngelo, a Pietà Rondanini. Iniciada ainda ao tempo da Pietà Bandini, a execução dessa escultura o acompanhou até o último de seus dias e de suas horas, tendo ficado para alguns críticos como "inacabada". Digamos que não se trata de uma escultura inacabada, mas de uma escultura de execução continuada e permanente.
Estava, então, o nosso Michelângelo entre os 80 e os 90 anos de idade quando a esculpia. Se o artista acreditara que a Pietà anterior, a Pietà Bandini, na qual o filho se funde com a sua mãe, decretando a morte do próprio Michelângelo, seria a sua derradeira escultura a adornar a sua sepultura, agora, o escultor já viveria em um momento post-mortem: a sua morte já havia ficado para trás. O instante de sua morte como um momento passado.
E foi como quem já sobrevivera à propria morte, como quem já era morto e enveredava-se em um tempo existencial outro que Michelângelo esculpiu a Pietà Rondanini.
Na linha de interpretação que tecemos aqui, uma nova representação do Michelângelo-filho com a sua Pietà-mãe.
Uma vez, já tendo o escultor vencido o instante de sua própria morte, de seu retorno à terra-Mãe, Michelângelo nessa Pietà ainda que em estado de fusão com a sua mãe - O Cristo morto está misturado ao corpo da Nossa Senhora - não mais está em um patamar terreno, inferior sobre o qual recaem os altos olhos de Nicodemo. Nessa escultura, mãe e filho alteiam-se, como se houvessem vencido a morte, não mais a forma piramidal dos grandes túmulos. Apontam para o mais alto, ainda que amalgamados. E mais! Não estão em um mesmo nível. Agora, é o filho quem suspende e sustenta a sua mãe, que a traz em seus ombros, que a carrega.
Se na primeira Pietà, o Cristo-filho-Michelângelo estava inerme, vencido nos braços de uma poderoa mãe-Nossa Senhora, se na segunda Pietà, prevendo a sua morte, o filho-Cristo-Michelângelo com a sua mãe-Nossa Senhora fundia-se, na última Pietà, a mãe, finalmente, é, em tudo e por tudo, a filha de seu Filho.
Na sua derradeira Pietà, na Pietà Rondanini, Michelângelo no Cristo representado, não mais está morto, mas quites com a sua própria existência. Está de pé, com forças para suportá-la e sozinho carregá-la.
Atravessada a morte, descido o Cristo da Cruz de sua existência, a maternidade é superada. De volta à unidade universal, o Cristo e o filho voltam a ser o Pai. O Pai de sua mãe. E a mãe? A Mãe é a carne e o Mistério que fazem nascer o pai e o filho e tudo o mais que existe e se espalha por todo o Céu e brota do mais profundo de si mesma, que é a Terra.
Uma maravilhosa PÁSCOA a todas e todos!