segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

 Dulcinéia



Ser quixotesca, burlesca, 

bailar em moinhos de vento. 

Enxergar o mundo à altura

do Cavaleiro da Triste Figura.


Desenroupar-me de pensamento, 

ser só picaresca, nenhum lamento,

reinar em vendas como

em castelos,

fazer-me ouro com os meus

farelos,


Transformar delitos

em só justiça,

todos os desditos 

em sagrados ritos,

os laivos do verdugo

em contra-dança,


Da terra malferida 

sacar a lança

e fazer do sangue 

a esperança.


Ter Sancho em mim 

num só caminho. 

Pois ninguém se é

se é sozinho.


Esporar a casca 

de Rocinante

num destemor

de cavaleiro andante,

desvalindo torres

e qualquer

gigante.


E quando 

arriasse a noite 

com seu açoite

e da batalha eu só

colhesse o nada,


ser só Dulcineia

a senhora amada,

a que por só desejo

é trespassada.


Assim vou pintando 

de passo em sonho

as tintas do belo 

no real medonho,

remetendo ao prelo

essa tão formosa prancha

onde a carne do mundo 

tem a alma sem Mancha.


Andrea Campos

sábado, 18 de dezembro de 2021

A fábula do Pássaro e do Peixe.


 O PÁSSARO e O PEIXE 


O que vou contar aqui é apenas uma fábula... Uma fábula azul. Uma fábula azul carmim turquesa. Sim, carmim. Porque não há como decantar as gotas de sangue. Mas não, não te contagiarão. Elas estão lá impermeáveis no azul de mim. Então, como eu ia dizendo essa é apenas uma fábula. A fábula do pássaro e do peixe. 


Uma vez era um pássaro, na mesma vez era um peixe. Eles viviam contemplando-se de espaços opostos e intangíveis. O pássaro no céu, o peixe no mar. O pássaro em sua fome irrefreável de vida, pensava em comer o peixe. Mas, se comesse o peixe, o peixe desapareceria e ele não poderia mais contemplá-lo. 


Por sua vez, o peixe, em sua fome irrefreável de vida, pensava em comer o pássaro. Mas, se comesse o pássaro, o pássaro desapareceria e ele não poderia mais contemplá-lo. E assim, olhavam-se, dia após dia, o peixe e o pássaro num mar e céu de desejos. 


O tempo derramava-se entre a escopia e o devoramento. Entre o olhar e a fome. Na escolha entre a distância ou o aniquilamento temperado de solidão. 


Um dia, o pássaro amerrissou. O peixe, trêmulo, apavorado, escorregou por entre as brumas das ondas. O pássaro aproximou-se, o peixe arreganhou a boca e o pássaro deu um salto pra trás, pensando que iria ser, naquele momento, também devorado. 


Até que se olharam mais de perto e depuseram as armas entre asas e barbatanas envergonhadas. Foram achegando-se devagarinho. "Não, não tenha medo, vou lhe ensinar a nadar", disse o peixe, ao que ouviu do pássaro "Não, também não tenha medo, vou ensiná-lo a saltar por sobre as ondas para fugir dos predadores". 


Assim, o peixe e o pássaro, apreenderam o amor em suas vidas e mergulharam num voo azul no mar sem fim.


Andrea Campos