domingo, 31 de janeiro de 2021

 O PECADO ORIGINAL: A INAUGURAÇÃO DA HUMANIDADE POSSIBILITADA PELA VONTADE DE SABER DO FEMININO.




No início era o paraíso representado pela abundância, pela não necessidade de esforço, pela ociosidade e pelo não saber. A letargia e a malemolência seriam eternas às custas do não conhecer. Adão acatou o estado de ignorância com louvor, mas não Eva. Para ela, todo sacrifício valeria a pena em nome do conhecer, toda dor, precariedade e provisoriedade do ser. Em sua vontade de saber, Eva acatou o desafio da vida e fez face à morte. Assim, a possibilidade humana para o conhecer foi fruto não apenas da mordida de um fruto da árvore proibida, mas do destemor e ousadia do querer saber feminino.
O grande Michelângelo no teto da Capela Sistina enfatiza o projeto do saber humano não apenas protagonizado por uma única figura feminina, mas por duas: a serpente também é uma mulher. A sedução de uma e a curiosidade da outra. As subversões de ambas se tocam.
Uma vez expulsos do paraíso e condenados a inaugurar a humanidade com o trabalho, a dor e o esforço pelo conhecer, na representação de Michelângelo, Adão e Eva não cobrem as suas partes, não há folhas de figueiras nem o pudor das mãos sobre os seus sexos. Afinal, não havia do que sentirem vergonha. E isso, na leitura do Mestre, ao já ter provado do fruto proibido, Eva já sabia.

 E JÁ ESTAVA LÁ NO ANTIGO TESTAMENTO: A PRESCRIÇÃO DA VACINA.




A tradição hebraica entrecruza-se com o paganismo da mitologia grega. Símbolos gregos são recorrentes nas narrativas dos livros que compõem a Bíblia. Se na Mitologia Grega existia Esculápio, aquele que promovia a cura com ervas e antídotos e cujo símbolo é o bastão e a serpente, na Bíblia existe a "serpente" de bronze que, também, simboliza o antídoto e a cura.
Segundo o Antigo Testamento, em meio à PESTE causadora de grande mortandade, Deus ordenou a Moisés que erguesse uma "serpente" de bronze. Aquele que a olhasse sobreviveria ao ataque de mordidas de "serpentes". Moisés obedeceu ao seu Senhor. E foi assim que o "povo de Deus" aplacou a PESTE. Leiamos o que diz as Escrituras Sagradas:
"O Senhor disse a Moisés: "Faça uma serpente e coloque-a no alto de um poste; quem for mordido e olhar para ela viverá".
Moisés fez então uma serpente de bronze e a colocou num poste. Quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, permanecia vivo."
Não é forçar a licença poética interpretar que "as mordidas das serpentes" são os ataques de venenos, de patógenos, de vírus e bactérias e a "serpente de bronze" é o seu antídoto, proveniente da própria serpente, mas tornada bronze (inativado).
Ou seja, há mais de 2000 anos, a vacina já estava na Bíblia. E prescrita por Deus.
"
Ilustração: Afresco de Michelângelo no teto da Capela Sistina: a Serpente de Bronze.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

"OS ANOS QUE VIVEMOS EM PERIGO" E COMPELIDOS A PRODUZIRMOS MAIS, MAIS E MAIS...




Do mesmo modo que, ao sermos infectados por um vírus, o nosso organismo se põe a postos e inicia uma campanha de guerra a fim de eliminá-lo, ao sermos ejetados a um mar de morte, no qual somos por ela rodeados por todos os lados, reagimos, automaticamente, com práticas que venham a reafirmar a vida que continua a palpitar em nós.
Alguns se colocam em estado de torpor, o que também é uma reação e a escolha da autopreservação pelo não enfrentamento. Outros, por não suportarem o estado de guerra deflagrado e a sua vulnerabilidade diante dela, nega-a. Muitos lançam-se ao hedonismo em um paradoxo hipercomplexo: Gozar ao máximo o dia de hoje, inobstante (ou a fim de?) gozar, ao máximo, o prazer da morte, logo amanhã.
O que é comum a todos nós, sem exceção, é que se trata do momento de revelamos as nossas estratégias singularíssimas de fazermos face à morte. E uma delas é nos pormos em movimento incessante de produtividade.
Mais do que estarmos em um modelo capitalista, neoliberal, que nos empurra para o consumo e a permanente produção de riquezas, diante do real da morte, pomo-nos em franca atividade com a intenção de produzirmos vida a fim de nos sentirmos vivos. A fim de atestarmos para nós mesmos que a nossa imagem continua a ser refletida diante do espelho, que a vida que circula em nós se sobrepõe à morte que nos fareja.
Uma reafirmação do Dasein, do ser e estar no mundo, heideggeriano, ou mesmo, um campo de luta de forças nietzschiano, no qual pretendemos fazer valer a nossa potência vital, e por quê não, uma clara disputa entre pulsão de vida e pulsão de morte freudiana.
No entanto, como tudo que existe em excesso transborda e sobra, o esforço contínuo pela produção de vida em nós e para fora de nós pode ter um efeito perverso se nos passa a causar angústia, se nesse mar de morte nos sentimos como permanentes náufragos a nadar freneticamente em busca de uma tábua de salvação que nunca vem.
Se ao pararmos para boiar, nos sentirmos como prestes a sucumbir, esse movimento perpétuo, transformado em compulsão, poderá ter o efeito reverso de nos levar à exaustão e à depressão.
O que fazer, então?
Já que ilustrei o fenômeno com a filosofia e a psicanálise, continuando nesses saberes, talvez uma saída-atalho seja a volta aos gregos. A volta a Sócrates e ao seu cuidado de si. A volta aos estoicos e à sua capacidade de contemplação.
Sim, é saudável produzirmos vida para nos sentirmos vivos quando a morte se faz perigo constante. Vida corporificada em produtividade profissional, artística e até na reprodução de um novo ser vivo. É o nosso modo mental de produzirmos anticorpos contra as ameaças à existência.
Mas, também podemos produzir anticorpos e imunidade, fazermos vencer a vida sobre o absurdo da morte, através da reflexão, do sonho, da meditação, das memórias. Podemos produzir vida, também, imersos no nada. E no nada encontrarmos o inesperado.
Ao nos percebermos vivos pela nossa capacidade contemplativa de sentir a vida e enxergar o outro, produzimos uma nova estética para o viver e para o morrer. E podemos reafirmar a existência nossa e o pulsar do mundo ao tocarmos no fundo impossível de nós mesmos.

 OLHAR DE DENTRO, OLHAR DE FORA.




Não conhecia esse belo grafite, de autoria do artista plástico Kbça, desenhado desde 2017 nos muros de uma casa em uma rua próxima da Universidade onde ensino. Adoro arte, gosto de urbanismo, mas não conhecia essa obra que acontece na minha cidade todos os dias. Foi preciso que Mia Couto, que esteve no Recife ou alguém que o represente, lá de Moçambique, se lembrasse dessa arte e divulgasse essa porção de água do rio que corre na minha aldeia para que eu a conhecesse. E, assim, muitas vezes será.
Assim muitas vezes será porque nunca conhecerei a profundidade e todas as margens do rio que passa na minha aldeia. Assim muitas vezes será porque não me vejo em meus próprios olhos, e Narciso pouco deles me ensina diante do espelho. Assim sempre será, porque mais do que se tratar de colonialismos e subalternizações, trata-se de interdependências e do diálogo necessário. Trata-se de ser visto e nomeado pelo outro para nascermos. O tempo atual, no mundo global que construímos, mais do que nunca, nos mostrou o quanto estamos juntos, misturados e intrincados. O quanto o outro, a despeito de nossas vontades, nos afeta e o quanto estamos permanentemente e irrecorrivelmente, a afetar o outro. A despeito de distâncias reais, as proximidades há muito deixaram de ser simbólicas.
Assim muitas vezes será porque eu sou o outro e o outro sou eu. E, não poucas vezes será o outro que virá me contar do rio da minha aldeia. E me falará de suas cores e até mesmo de seus caprichos. E nele me ajudará a mergulhar para nadarmos, juntos.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

 "ROSA E MOMO": SOPHIA LOREN , ALTIVA, POTENTE E BELLA ÀS VÉSPERAS DOS 90 ANOS DE IDADE.






Nesses dias tão cheios de notícias e cansaço, com agradável surpresa deparei-me com esse belo presente que nos foi ofertado por La Loren: um novo e sensível filme estrelado pela diva e estreado nos cinemas e na Netflix no mês passado.
O filme traz todos os condimentos para um tempero de resistência e enfrentamento à onda obscurantista atual: A protagonista é uma bela e potente mulher no auge de seus quase noventa anos de idade (mesmo que com problemas de saúde) e o papel feminino coadjuvante é estrelado por uma mulher trans (assistam no idioma original ou não o perceberão). Ambas são prostitutas, sendo que a primeira, uma judia sobrevivente do holocausto, é aposentada e vive de cuidar dos filhos abandonados de outras prostitutas. Prostitutas árabes, judias, muçulmanas. Junto às crianças e à sua vizinha trans, formam o que seria uma família "não tradicional" estabelecida por correntes e laços de solidariedade e afeto. Até que um dia lhe chega um menino negro, senegalês e muçulmano. Filho de uma prostituta precocemente assassinada por seu companheiro cafetão... E que está se iniciando no tráfico de drogas...
O roteiro parece-lhe pesado? Pois com tudo isso, o filme "Rosa e Momo", cujo título original nos diz mais sobre o seu enredo "A vida antes de ser" (La vita davanti a sé), em inglês "The life ahead", é um caldo de leveza, sensibilidade e esperança para os tempos que correm. Para esses dias de quarentena, pandemia e lonjuras, quando chegamos quase ao fim de um árduo e pedregoso caminho, "Rosa e Momo" nos traz a mensagem de que atravessamos uma longa noite de uma vida que é vestíbulo da Vida, vida que ainda não é, mas que será outra Vida e a vida mesma, no amanhecer.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

 BRIDGERTON: AFINAL, HOUVE UMA RAINHA NEGRA NA INGLATERRA OU TUDO NÃO PASSA DE UMA AÇÃO AFIRMATIVA FEITA EM FICÇÃO?





Era finais do ano de 2017 e na recorrente cena que insiste em plasmar o conto de fadas à família real britânica, um apaixonado Príncipe Harry, anunciava o seu noivado com a atriz americana, a bela morena, Meghan Merkle. Narrativas do passado recente da história real europeia eram evocadas: uma atriz americana e um Príncipe europeu tal como no casamento entre o Príncipe Rainier e Grace Kelly. Ah, o eterno retorno nas histórias de amor principescas! A atriz, uma autodeclarada feminista e ativista dos direitos humanos alardeava estar mais do que pronta para ser uma princesa, e que eram perfeitamente compatíveis o exercício dos papeis de Cinderela e o de mulher emancipada a um só tempo.
Tudo ia perfeitamente bem nos tabloides britânicos e fora deles quando no dia do matrimônio real, em maio, mês das noivas, de 2018 na Capela de São Jorge, no Castelo de Windsor, compareceu, visivelmente emocionada, mas francamente constrangida, a mãe da noiva, uma mulher bela... E negra. Sim, Markle não era apenas uma bela mulher morena, a presença de sua mãe anunciava o inafastável: Sangue negro estava invadindo o sangue azul da Família Real. Se isso foi bem acolhido pela realeza britânica, em detalhes, não sabemos. Apenas recebemos a notícia em janeiro de 2020 que o casal estava renunciando às suas funções reais e no lugar de uma entusiasmada Princesa Markle, uma determinada senhora Meghan atirava ao Tâmisa o tratamento a ela dispensado de 'Sua Alteza Real'.
O que se passou entre as paredes dos castelos britânicos entre 2017 e 2020 nem o tablóide, The Sun, conseguiu apurar, mas o que já vinham fazendo os pesquisadores e acadêmicos americanos e ingleses, nós podemos alardear: Pesquisas e mais pesquisas a fim de vasculhar se já haveria existido ou não, em algum tempo, sangue africano na Família Real Britânica. E as pesquisas que já vinham sendo feitas desde a década de 90 do século passado, ganharam novo fôlego na propagação do nome da Rainha Sophie Charlotte de Mecklenburg-Strelitz (1744-1818), uma princesa de um ducado no norte da Alemanha, no ainda Sacro Império Romano-Germânico que deixou seu reino para desposar um apaixonado rei Jorge III da Grã-Bretanha.
E essa rainha que mais tempo ficou como rainha consorte no reino britânico até hoje, 57 anos, descenderia de uma mulher africana, Madragana Ben Aloandro, amante do rei de Portugal, Afonso III. Charlotte, então, estaria, segundo especialistas em diáspora africana, ligada ao ramo negro da Casa Real Portuguesa. No entanto, Madragana não seria exatamente uma mulher negra, mas moçárabe, típica dos povos africanos do norte. A despeito de que a ascendente negra de Charlotte, seria uma moura, o fato é que não poucos relatam os traços mulatos da rainha e sua clara herança negra. Traços negros que foram esbranquiçados pelos pintores da Corte, mas não pelo pincel de Allan Ramsay.
Charlotte está separada de sua ascendente africana em 15 gerações, e tendo ela traços negros ou não, o que é certo é que tem sangue africano. Como é certo que a rainha de sangue africano, por sua vez, é ascendente da rainha Vitória e da rainha Elisabeth II. E em sendo ascendente da Rainha Vitória, cujos filhos se espalharam por praticamente toda a realeza europeia, isso significa que em todo sangue azul europeu, há sim sangue negro, sangue africano.
Talvez tenha sido esse o recado que o diretor da série de grande sucesso, Bridgerton, Chris Van Dusen, da NetFlix, baseada nos livros de igual sucesso da escritora Julia Quinn queira dar à Nobreza britânica e aos seus súditos. Recado a nós todos. Às pessoas negras, inclusive, uma vez que uma das ações políticas da rainha negra fictícia foi conceder linhagens nobiliárquicas, incluindo propriedades, a outras pessoas negras, lembrando-nos que representantes de minorias no poder devem alçar minorias ao poder e não apenas se manterem como incidentes excepcionais. Sabemos que não são poucos os casos de pessoas pertencentes a uma minoria, e aqui me refiro a todas elas, que ao alcançar poder econômico e social, tão somente reproduzem o modelo de opressão que as oprimiu e perseguem os seus privilégios. Na série televisiva, a razão objetiva na narrativa para vermos tantas pessoas negras circulando em meio à nobreza é, justamente, essa concessão de linhagens e propriedades "em série", já desculpando-me pelo trocadilho, promovida pela rainha negra.
No sentido metafórico, mais do que uma ação afirmativa a sustentar a diversidade de atores brancos e negros, a série revela uma verdade. Uma verdade que não está expressa no fenótipo, mas que corre no genótipo. Se o personagem do Duque de Hastings e de outros, na realidade, não eram negros na aparência, traziam, certamente, também, a África na essência. O mesmo se pode dizer, como aqui já o foi dito, no sangue da própria Rainha Elisabeth II e, por consequência, corre nas veias do apaixonado Príncipe Harry. E não é impossível que o diretor, ao eleger um casal de duque e duquesa negro e branca como protagonistas, tenha querido fazer uma homenagem aos atuais Duque e Duquesa de Sussex, Harry e Meghan ao contrário. Afinal, temos, atualmente, uma duquesa negra na realeza britânica.
A série Bridgerton, portanto, de forma lúdica e fantasiosa, através de uma estética que prima pela diversidade, que é aquela que compõe cada um de nós, seres humanos, não fez nada mais do que colocar o preto no branco no papel da história.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

 O QUE UMA EPIDEMIA TEM A VER COM A ORAÇÃO DA AVE MARIA?



A oração da Ave Maria tal qual a conhecemos hoje passou por um processo milenar de mudanças, alterações e inserções em sua composição. Tendo a sua primeira parte laudatória, por base, o Evangelho de Lucas, a segunda parte, que diz respeito à súplica, é muito mais uma criação popular que foi acolhida pela Igreja. O "Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, os pecadores", foi um apelo dos fieis já na Idade Média, enquanto que o "Agora e na hora de nossa morte" foi uma inserção feita em razão da Epidemia da Peste Negra entre os anos de 1346 e 1352.
Essa epidemia, causada por pulgas de ratos, alastrou-se pela Europa ceifando a vida de cerca de 30 milhões de pessoas, quase um terço da população europeia à época. Da mesma forma que hoje se acusa os chineses pela Pandemia do Coronavírus, os grupos atacados como culpados da terrível chaga foram os judeus e os leprosos. No entanto, diversamente da crise sanitária atual, as medidas eram extremas: pessoas suspeitas de terem contraído a nefasta doença eram obrigadas a se retirarem das cidades por cerca de quarenta dias (daí, o termo "quarentena") e, uma vez que não havia mais espaços para enterrarem-se os mortos, os corpos eram empilhados como mercadorias e queimados.
Nesse verdadeiro estado de terror e aflição, os povos europeus e cristãos suplicavam aos céus e a Deus pela interseção da Ave Maria, implorando-a para que rogasse por eles, "agora e na hora de suas mortes"... Mortes essas tão atuais e iminentes em meio à epidemia. Esta segunda parte da oração, fruto do desespero e da criação popular, era rezada em caráter privado. Apenas em 1568, o Papa São Pio V, ao promulgar o novo Breviário Romano, estabeleceu solenemente a recitação de sua fórmula.
E da fé dos que sofreram aos que hoje sofrem, a oração da Ave Maria adquiriu a força dos que rogam, sem intermediários, diretamente aos céus.




Telas:
"A Anunciação" de Leonardo da Vinci.
"Triunfo da Morte" de Peter Brueguel.

sábado, 9 de janeiro de 2021

 

ESTÉTICA DO BEM E DO MAL:

VOCÊ REZARIA EM UMA CAPELA NA QUAL BOLSONARO REPRESENTASSE UM SANTO?





O que pouco hoje se fala é sobre os escândalos causados por Michelângelo na confecção das paredes e do forro da sacra Capela Sistina. Corpos desnudos, sensuais e erotizados representando os santos e o próprio Jesus. Figuras públicas corruptas e de má-fama transitando entre os anjos. Em razão de suas ousadas blasfêmias, Michelângelo foi obrigado a, ao menos, vestir os santos. Quanto às figuras de moral duvidosa da época, hoje, as suas efígies passam por nós desapercebidas e diante delas podemos até, inadvertidamente, nos ajoelharmos, uma vez que não as conhecemos. E é sob as outrora tintas do escândalo que há muito se fazem os conclaves e se escolhem os Papas.

Mas, esse introito foi apenas para mostrar que houve uma tradição renascentista na qual às representações de arte sacra, compareciam não apenas as figuras do bem, mas também personagens, contemporâneos da época, malquistos.

E foi, talvez, tentando reeditar a melhor tradição renascentista que o artista baiano, Carlos Bastos, contratado para pintar os afrescos da Capela de São João Batista no Parque da Cidade do Rio de Janeiro, em 1972, durante os anos de chumbo da Ditadura Militar, após semanas trancafiado no templo, apresentou à Arquidiocese, as figuras da Santa Maria tendo ao seu colo o pequeno São João com o rosto de Caetano Veloso, e em seu acolhimento celestial, santos representados por Dorival Caymmi, Di Cavalcanti e Emílio Garrastazu MÉDICI! Como nenhuma tradição pode ser emulada pela metade, a concepção divina de Dante se fez presente e a obra constou de dois afrescos, um finalizado, representando o paraíso e outro, ainda inacabado, representando o purgatório. Não é preciso dizer que a capela foi dessacralizada e nela não se podem celebrar missas.

Mas, aí é que entra algo que é muito peculiar da tradição Católica: Nem tudo que é condenado, sobretudo, artisticamente, é destruído. Embora não mais templo religioso, a Capela se mantém para os céus erguida e os seus afrescos, preservados intactos e sempre restaurados. E protegidos sob um véu. Mas, nunca sob a história.

 

Com a CELEUMA suscitada pelas PÉTALAS da DIVA de JULIANA NOTARI, lembrei-me dos CUIDADOS sacros com as PARTES do DAVI de MICHELÂNGELO.





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A despeito dos livros queimados pela Inquisição, parece-me ser incontroverso que a Igreja Católica sempre foi a maior mecenas do mundo das artes plásticas em todos os tempos. Basta evocarmos toda a arte que transborda na Capela Sistina e nos Museus Vaticano para confirmarmos essa tese. Basta reportarmo-nos àqueles dias quando, a um só tempo, Michelângelo pintava o forro da Capela Sistina e, a algumas portas ao lado, Rafael era o artífice dos afrescos que iluminariam os aposentos papais, dentre eles o da Escola de Atenas.


Durante a Missa do Galo no último Natal, quando, então o Papa beijou a representação singela do menino Jesus, esse beijo ecoou na face de todos os artistas, não apenas dos Da Vincis e Giottos, mas também na daqueles que ergueram o atual e polêmico presépio que resiste no centro da Praça de São Pedro. Presépio com figuras a la Botero intergaláctico. Não preciso dizer que, às críticas e insultos ao presépio, o Papa Francisco fez ouvidos de mercador.


Mas do Papa Francisco, volto-me ao Papa Julio II em inícios do século XVI. À época, na República de Florença, a Igreja dispunha de um imenso bloco de mármore de Carrara na qual deveria ser confeccionada a figura bíblica do pastor Davi. A intenção era de que a escultura decorasse, em conjunto com a de outros profetas, incluindo a do profeta Josué já esculpida por Donatello, o contraforte da Catedral de Santa Maria del Fiori. Inicialmente, a obra foi encomendada a Duccio que a abandonou após a morte de Donatello. O Mármore restou vinte e cinco anos intocado até que as autoridades eclesiásticas contrataram para refazer a estátua, o então jovem artista Michelângelo.


Por ordens do Papa Júlio II, o Davi deveria ser esculpido totalmente nu, uma vez que a sua única armadura foi a Fé em Deus. O Sumo Pontífice, então, fiscalizou, diuturnamente, a confecção das partes do profeta, com o cuidado de que, de modo algum, Michelângelo ousasse representá-las na forma circuncidada, afinal, tratava-se de um Davi católico e não de um Davi judeu.


Após dois anos, uma vez, finalizada a obra-prima, debatia-se onde a mesma deveria ser instalada. Sandro Botticelli defendia que a estátua, com a sua beleza e suntuosidade deveria ficar dentro da Catedral, outros advogavam pelo projeto original, qual seja, diante da Catedral. O voto vencedor foi de que o Davi deveria ficar em praça pública, diante do Palácio do Governo na Piazza della Signoria, uma vez que na estátua estava representado não apenas o profeta, mas o cidadão florentino com a sua afirmação da liberdade e o seu destemor em face a Golias.


Quatro séculos depois, com fins de melhor preservação, a escultura foi transferida para o interior da Galeria da Academia de Belas Artes. Mas, o povo de Florença não aceitou que a praça ficasse "nua" e uma cópia do Davi foi esculpida a fim de continuar a adornar e a emanar vitalidade e força ao povo florentino. Sim, pois é disso que se trata: vitalidade e força. As mesmas que emanam da escultura feita a céu aberto pela artista Juliana Notari. Aquela obra de arte que representa o portal que atravessamos para chegar ao mundo e que assusta tantos homens não apenas pelo poder que tem de trazê-los à existência, mas de levá-los sempre de volta ao paraíso. A nudez feminina apenas é suportada enquanto objeto das fantasias masculinas, nunca como expressão feminina de poder. Menos ainda se essa representação tem como autora, uma mulher.


Talvez os puritanos que se dizem tão religiosos e apedrejam as Divas e os Davis, devessem melhor observar as palavras de Deus nas Escrituras. Segundo essas palavras, o homem foi feito à sua imagem e semelhança. E nessa semelhança incluem-se as partes e as pétalas.


E para representar o que há no mundo de mais sagrado, existe a arte, que tem o condão de, desde o mundo, possibilitar que se toque o céu. Para tanto, que sejam artisticamente incensados o aroma de partes e de pétalas: Urbi et Orbi.