quinta-feira, 31 de março de 2022

 Esbarro no teu corpo e o revolvo num arado de dedos. Brotam-me teus pêlos de minha plant(ação). E é dos canais de tua terra que jorra o gêiser que se espraia por meus pântanos, escorre em minhas curvas, regurgita por meus becos e me fertiliza. É só da tua seiva e do teu barro que é colhido o meu dia.

Amanheço. O meu corpo retesa, arrepia, se põe em ondas e é preciso te beijar. Te beijar é derrapar e cair, vertiginosamente, na boca do mundo.



segunda-feira, 28 de março de 2022

 "Meu alimento é só o que queima e incendeia, e no que traz morte aos demais, eu devo encontrar a vida".


Michelângelo BUONARROTI.



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Detalhe da abóboda da Capela Sistina: um dos quatro "ignudi" em torno do Profeta Jeremias.

 "Mas, se quando próxima, a infinita beleza que deslumbra os meus olhos, não permitir que meu coração se aguente em si, e de longe não me ofereça segurança e confiança, o que será de mim?"


Michelângelo BUONARROTI (Nascido Michel Agnolo).



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Detalhe do Juízo Final na parede da Capela Sistina (Eva junto a santas e sibilas,  sobe ao Paraíso)

quarta-feira, 23 de março de 2022

 DORÍFERO de POLICLETO.


"Dorífero" de Policleto, uma das esculturas da estatutária grega que inspirou Michelângelo na confecção do seu Davi. A original era em bronze, esta é uma cópia em mármore, romana. Observem a semelhança do contrapposto!


Em sua obra "Cânone", o escultor Policleto (420 a.C) estabeleceu as regras de harmonia e proporção do corpo humano. Do corpo humano perfeito. Ele é reconhecido como o "Pai da Teoria da Arte".




 DIADUMENO de POLICLETO e o DAVI de MICHELÂNGELO.


Verificar as fontes e referências de gênios como Michelângelo é um belo exercício em todos os sentidos. Primeiro porque nos coloca em face do árduo trabalho e diuturno esforço do artista que é tudo menos o inaugurador de uma arte que preexiste a si mesmo. Ele mergulha ou retoma uma tradição a fim de alterá-la ou superá-la. No Davi, Michelângelo, já um arguto anatomista, tendo já feito dissecação de cadáveres, supera claramente Policleto no cinzelamento dos ossos e músculos das costas.


Segundo,  nos auxilia a situar o tempo de cada artista. Ficando claro, por exemplo, que Michelângelo, mesmo tendo emulado os clássicos, é sobretudo um artista Moderno. 


E em meio a muito mais, a evidência do paganismo na arte grega. Mas um paganismo de pureza quase higiênica e, nele, a  ausência de tensão. O que não ocorre com o Davi de Michelângelo. Nessa estátua, o sagrado e o profano estão em estado de tensão permanente. Transbordando da arte sacra e alvejando os nossos olhos, o delírio da carne.





sábado, 19 de março de 2022

 Um grito túrgido  rolou abaixo pelo despenhadeiro. Faíscas roucas cortavam as pedras molhadas pelo fogo. Um vento ofegante suspirava entre as fendas de penhascos e pernas. De matiz gutural, silenciou, como se adentrasse as cavernas das bocas e dos templos. Até que adormeceu entrincheirado no lago escorrido de tua pele.


Andrea Campos


Ilustrações de Étienne Gros 





sexta-feira, 18 de março de 2022

 CAPELA PAULINA







Bem menos celebrada (e conhecida) do que a Capela Sistina é a Capela Paulina, encomendada pelo Papa Paulo III em meados do século XVI.


Dois de seus afrescos foram pintados por Michelângelo, passava ele dos 70 anos de idade: "A Conversão de Saulo (Paulo)" e "A Crucificação de Pedro". Neste último, descobriu-se, recentemente, um autorretrato de Michelângelo na representação de um dos oficiais romanos que assiste à cena em claros tormento e torpor.


A Capela Paulina não é aberta à visitação. Mais do que a Capela Sistina, vem a ser a capela privativa do Papa e da família pontifícia. 


É aqui que o Papa faz as suas preces e orações em recolhimento e silêncio. Nesses dias tenebrosos nos quais chegamos à catástrofe de termos cerca de 3.000 mortes diárias em decorrência da Pandemia do Coronavírus, convido aos que tem muita, alguma ou nenhuma fé a adentrar a Capela Paulina e levantar os olhos e corações aos céus junto a ele.

quinta-feira, 17 de março de 2022

 Carta de Amor de Napoleão a Josefina      


"Não passo um dia sem te desejar, nem uma noite sem te apertar, nos meus braços; não tomo uma chávena de chá sem amaldiçoar a glória e a ambição que me mantêm afastado da vida da minha vida. No meio das mais sérias tarefas, enquanto percorro o campo à frente das tropas, só a minha adorada Josefina me ocupa o espírito e coração, absorvendo-o por completo o pensamento. Se me afasto de ti com a rapidez da torrente de Ródano, é para tornar a ver-te o mais cedo possível. Se me levanto a meio da noite para trabalhar, é no intuito de abreviar a tua vinda, minha amada.


E no entanto, na tua carta de 23, tratas-me na terceira pessoa, por Senhor! Que mazinha! Como pudeste escrever-me uma carta tão fria? E depois, entre 23 e 26 medeiam quase quatro dias: que andaste tu a fazer, porque não escreveste a teu marido?... Ah, minha amiga, aquele tratamento do “senhor” e os quatro dias de silêncio levam-me a recordar com saudade a minha antiga indiferença. (…) Isto é pior que todos os suplícios do Inferno. Se logo deixaste de me tratar por tu, que será então dentro de quinze dias?! Sinto uma profunda tristeza, e assusta-me verificar a que ponto está rendido o meu coração. Já me queres menos, um dia deixarás de me querer completamente; mas avisa-me, então. Saberei merecer a felicidade…


Adeus, mulher, tormento, felicidade, esperança da minha vida, que eu amo, que eu temo, que me inspira os sentimentos mais ternos e naturais, tanto como me provoca os ímpetos mais vulcânicos do que o trovão. Não te peço amor eterno nem fidelidade, apenas a verdade e uma franqueza sem limites. No dia em que disseres: “Quero-te menos”, será o último dia do amor. Se o meu coração atingisse a baixeza de poder continuar a amar sem ser amado, trincá-lo-ia com os dentes.



Josefina: lembra-te do que te disse algumas vezes: a natureza faz-me a alma forte e decidida. A ti, fez-te de rendas e de tule? Deixaste ou não de me querer? Perdão, amor da minha vida. A minha alma está neste momento dividida em várias direcções e combinações, e o coração, só em ti ocupado, enche-se de receios…Enfada-me não te chamar pelo teu nome, mas espero que sejas tu a escrevê-lo.Adeus. Ah, se me amas menos, é porque nunca me amaste. Tornar-me-ias então digno de lástima." Napoleão


P.S. – A guerra este ano está irreconhecível. Mandei distribuir carne, pão, e forragens à minha cavalaria prestes a pôr-se em marcha. Os soldados patenteiam-me tal confiança que não tenho palavras para descrever-te. Só tu me causas desgostos. Só tu, alegria e tormento da minha vida. Um beijo aos teus filhos, de quem não me dás notícias. Ai, não! – levar-te-ia a escrever o dobro, e as visitas das dez da manhã não teriam o prazer de ter ver. Mulher!!!




 Carta de amor de Alain Delon a Romy Schneider após a sua morte.



Ici vous allez trouver une lettre qu’Alain Delon a écrit après le décès de son amour éternel Romy.

 

 Adieu ma Puppelé Source : Paris Match - N° 1724 - 11 juin 1982



"Je te regarde dormir. Je suis auprès de toi, à ton chevet. Tu es vêtue d’une longue tunique noire et rouge, brodée sur le corsage. Ce sont des fleurs, je crois, mais je ne les regarde pas. Je te dis adieu, le plus long des adieux, ma Puppelé. C’est comme ça que je t’appelais. Ça voulait dire «Petite poupée» en allemand. Je ne regarde pas les fleurs mais ton visage et je pense que tu es belle, et que jamais peut-être tu n’as été aussi belle. Je pense aussi que c’est la première fois de ma vie - et de la tienne - que je te vois sereine et apaisée. Comme tu es calme, comme tu es fine, comme tu es belle. On dirait qu’une main, doucement, a effacé sur ton visage toutes les crispations, toutes les angoisses du malheur.   Je te regarde dormir. On me dit que tu es morte. Je pense à toi, à moi, à nous. De quoi suis-je coupable ? On se pose cette question devant un être que l’on a aimé et que l’on aime toujours. Ce sentiment vous inonde, puis reflue et puis l’on se dit que l’on n’est pas coupable, non, mais responsable… Je le suis. A cause de moi, c’est à Paris que ton cœur, l’autre nuit, s’est arrêté de battre. A cause de moi parce que c’était il y a vingt-cinq ans et que j’avais été choisi pour être ton partenaire dans «Christine». Tu arrivais de Vienne et j’attendais, à Paris, avec un bouquet de fleurs dans les bras que je ne savais comment tenir. Mais les producteurs du film m’avaient dit : «Lorsqu’elle descendra de la passerelle, vous vous avancerez vers elle et lui offrirez ces fleurs». Je t’attendais avec mes fleurs, comme un imbécile, mêlé à une horde de photographes. Tu es descendue. Je me suis avancé. Tu as dit à ta mère : «Qui est ce garçon ?». Elle t’a répondu : « Ce doit être Alain Delon, ton partenaire… ». Et puis rien, pas de coup de foudre, non. Et puis, je suis allé à Vienne où l’on tournait le film. Et là, je suis tombé amoureux fou de toi. Et tu es tombée amoureuse de moi. Souvent, nous nous sommes posés l’un à l’autre cette question d’amoureux : «Qui est tombé amoureux le premier, toi ou moi ?». Nous comptions : «Un, deux, trois !» et nous répondions : «Ni toi, ni moi ! Ensemble !». Mon Dieu, comme nous étions jeunes, et comme nous avons été heureux. A la fin du film, je t’ai dit : «Viens vivre avec moi, en France» et déjà tu m’avais dit : «Je veux vivre près de toi, en France». Tu te souviens, alors ? Ta famille, tes parents, furieux. Et toute l’Autriche, toute l’Allemagne qui me traitaient… d’usurpateur, de kidnappeur, qui m’accusaient d’enlever «l’Impératrice» ! Moi, un Français, qui ne parlais pas un mot d’allemand. Et toi, Puppelé, qui ne parlais pas un mot de français. 

 

Nous nous sommes aimés sans mots, au début.




sábado, 5 de março de 2022

Beatriz Milhazes





 O pintor contemporâneo brasileiro mais festejado e conhecido no Brasil e no exterior é o nosso pernambucano de Miami Romero Britto. 

Britto segue e, ao mesmo tempo, desafia a cultura pop Andy Warholiana: ele está onipresente nas paredes, nos pratos, nas xícaras, nas colheres, nos travesseiros, na minha sombrinha, nos extintores de incêndio... Isso faz com que a sua obra super-pop da modernidade líquida dure bem mais dos que os quinze minutos preconizados por Warhol.

 Bem, mas não estou aqui pra falar de Britto. Gostaria de apresentar-lhes, para quem ainda não a conhece, uma artista plástica brasileira contemporânea jovem com uma arte tão cheia de cor como a de Britto, mas que frequenta pouco xícaras e mais lugares como o MoMa e a Bienal de Veneza: BEATRIZ MILHAZES. A obra de Beatriz é circularmente feminina, pujante, imagética... Explosivamente ovariana! Não valorizo um artista pelos valores de seus quadros, sei que há muito de especulação e oportunismo no mercado da arte, mas o fato é que a nossa carioca Beatriz é a única artista brasileira a ter um quadro vendido por mais de 1 milhão de dólares, feito alcançado unicamente por nossa Tarsila do Amaral com o seu Abaporu. Ah! Mas, claro que Beatriz é pop! Se você for à loja da Taschen em Nova York, no SoHo, lá estarão seis murais de Beatriz a sorrirem e a se eternizarem por mais de quinze minutos pra você!

 OS TRÊS BEM-AMADOS DA CADEIRA DE No. 19 da ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETRAS.





Hoje é um dia feliz. Um dia de celebração. Ao mesmo tempo, um dia nostálgico, dia de desalinhar e realinhar memória. A Cadeira de número 19 da Academia Pernambucana de Letras será ocupada, a partir de hoje, por nosso querido professor, colega e amigo SÍLVIO NEVES BAPTISTA. O mais novo imortal pernambucano. Mas, eu não posso deixar de pensar em seus antecessores, esses que, também, foram meus amigos. Não posso deixar de me lembrar  com alegria embolorada em tristeza, de João Cabral de Melo Neto. João tímido, retraído, gentil, mas não menos ativo e ousado, recebendo-me com tanto carinho em seu apartamento do Flamengo no Rio. Não posso deixar de pensar em seu sucessor na mesma cadeira, Marcus Accioly, amigo e companheiro que nunca deixou de apoiar-me em minhas investidas no campo do Direito & Literatura, havendo participado de vários eventos para os quais o convidei para falar sobre o tema na Universidade Católica. Marcus sempre disponível, atencioso, apesar de tantos compromissos, um dos quais, o aniversário de seu próprio pai! E, por fim, hoje, a cadeira que já foi de João, que já foi de Marcus, estará sob as letras de nosso querido Sílvio Neves Baptista, grande professor de Direito Civil, grande ensaísta, colega e amigo em tudo entre nós afetuoso e presente. Homenageio esses três grandes e queridos amigos escritores, ocupantes da cadeira de número 19 da Academia Pernambucana de Letras,  com o belíssimo poema de João Cabral de Melo Neto: "Os Três Mal-Amados". Vida e Luz para o nosso mais novo IMORTAL!


Os Três Mal-Amados


João Cabral de Melo Neto


Joaquim:


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.


O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.


O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.


O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.


Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.


O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.


O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.


O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.


O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.


O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.


O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.