terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

 "LAMENTO ESTAR MORRENDO JUSTAMENTE QUANDO ESTOU APRENDENDO O ALFABETO DE MINHA PROFISSÃO".


(Palavras de Michelângelo ao estar falecendo às vésperas de completar 89 anos de idade no dia 18 de fevereiro de 1564.)


Essa frase pronunciada pelo "Divino" em seu leito de morte não apenas revela a potência vital de Michelângelo e o seu amor ao trabalho e à vida, uma vez que estando quase aos 90 anos de idade, tudo para ele estava ainda para ser inaugurado, em um processo incessante de aprendizagem, mas, também, tem forte conotação para o mundo da estética. 


Michelângelo, a despeito de sua artrite, fez uso de seu cinzel e martelo até os seus últimos dias de vida. Pouco antes de falecer, ele havia esculpido a sua terceira Pietà, a Pietà Rondanini. Essa Pietà é de uma modernidade a toda prova. Poderia estar sendo esculpida hoje, poderia vir a ser esculpida amanhã.


 Sim, Michelângelo faleceu fazendo Arte Moderna. Arte que viria ao mundo apenas quatro séculos após a sua morte... Arte que daria o seu primeiro respiro uma vez que viessem a ser superados o maneirismo, o barroco, o rococó, o neoclassicismo, o romantismo, o impressionismo e tantos outros ismos. Mas, Michelângelo morreu aprendendo o alfabeto da Arte Moderna. E por ser gênio, ele muito bem o sabia...e lamentava que a morte o impedisse de seguir soletrando o seu beabá...



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Ilustração: "Pietà Rondanini" de Michelângelo - 1564.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

 MASACCIO, o único artista que Michelângelo respeitou como um "professor"(frequentava a Capella Brancacci, a de m de copiar os seus afrescos), morreu aos tenros 26 anos de idade e, muito provavelmente, ENVENENADO... Invejas, tramas, competição e intrigas eram muito correntes durante o renascimento da ARTE... Michelângelo fez bem em se proteger de Bramante...








Capella Brancacci

 CAPELLA BRANCACCI (FLORENÇA)- A "CAPELA SISTINA" DO INÍCIO DO RENASCIMENTO PINTADA POR MASACCIO.

(E na qual Michelângelo treinava a sua pintura...)















domingo, 20 de fevereiro de 2022

O Corredor Vasari

 CORREDOR VASARI: O "HELICÓPTERO" DOS MÉDICI.


Não é de hoje que banqueiros, magnatas e nem tão galardoados pela fortuna, anseiam por moverem-se de suas mansões até os seus escritórios sem tropeçarem com a plebe rude e as intempéries do trânsito. É assim, ao menos, desde que o capitalismo financeiro resplandeceu na Toscana e os  mais poderosos dos capitalistas, a família Médici, que detinha tanto o poder financeiro, como o poder político em Florença, desejaram por locomoverem-se de forma célere, segura e, mais que tudo, privada. 


Em 1565, com o casamento do primogênito do governante Médici, o florentino Cosimo I, com a filha de um Imperador austríaco, este anseio por demonstração de poder e gozo de privilégios através  do teletransporte tornou-se uma urgência. E para a  concretização desse desejo, impunha-se comissionar o mais rápido dos arquitetos na eleboração e implementação de obras superiores em engenho e arte: Giorgio Vasari.


O poderoso Médici, então, encomendou a Vasari, que já havia sido o arquiteto de seu edifício de escritórios, o Palácio dos Ofícios, posteriormente transformado na Galleria degli Uffizi, uma passagem secreta, através do qual, ele, a sua família e os seus convidados pudessem transitar de sua residência no Pallazzo Pitti , passando pelo Pallazzo Uffizi, até os seus escritórios no Pallazzo Vecchio, no centro da cidade.  Nos moldes das tradicionais passagens secretas desde a Idade média, esperava-se que Vasari planejasse um longo túnel subterrâneo, mas para encantamento  dos Médici, Vasari, provavelmente, já intuindo o júbilo dos poderosos em estarem suspensos sobre tudo e todos, projetou um caminho "aéreo", um corredor sobre a cidade florentina. A obra, como era costume de Vasari, foi arquitetada e implementada em tempo recorde: cinco meses. A "via aérea" tinha o seu auge de maravilha no cruzamento da Ponte Vecchio sobre o rio Arno e nas aberturas estratégicas como aquela que descortinava o rio e a que dava para a nave da Igreja de Nossa Senhora da Felicitá, propiciando que os Médici assistissem às missas sem serem incomodados pelos demais fieis, vale dizer, de um legítimo camarote.


Durante séculos, esse caminho aéreo "secreto" ficou fechado ou com acesso limitado, abrigando partes do acervo do museu da Galleria degli Uffizi. Durante a II Guerra Mundial, depois de haverem bombardeado quase todas as pontes de Florença, os alemães, a mando de Hitler, pouparam não apenas a Ponte Vecchio como o Corredor Vasari. Parece que os fascínios de Hitler pela arte, nessa circunstância, falaram mais alto do que as suas paixões pela destruição, como também pode ser que os monumentos tenham sido salvos por apenas mais uma estratégia de guerra.


Há meia década, o corredor vem passando por restaurações e reformas, sendo que estava prevista a sua entrega ao acesso público, através da aquisição de ingressos, neste de ano de 2021. Em razão da pandemia não se sabe se será possível...


Mas algo é certo, em uma data ainda longínqua ou próxima, desde o século XXI, ao adentrarmos por uma porta discreta e insuspeita no antigo edifício de escritórios dos Médici, na Galleria degli Uffizzi, poderemos alcançar o século XVI. Atravessando o Corredor Vasari, suspensos no tempo, cumprimentaremos os Médici com um sorriso.










quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

 ARACY MOEBIUS DE CARVALHO GUIMARÃES ROSA: O "ANJO DE HAMBURGO".


Em 1938, João Guimarães Rosa apostava em uma nova vereda existencial. Insatisfeito com o sofrimento experimentado no exercício da medicina e frustrado no casamento, seguiu, sozinho, sem a família, rumo a ocupar o seu primeiro posto internacional no Itamaraty: o de Cônsul-Adjunto no Consulado de Hamburgo na Alemanha. Lá conheceu a alta funcionária, Chefe do Departamento de Passaportes, Aracy de Carvalho, culta, poliglota e que, também, havia desertado do marido no Brasil em companhia de seu único filho de cinco anos de idade. Aracy deixou o marido em um tempo em que o preconceito contra mulheres separadas no Brasil atingia os píncaros. Apaixonaram-se. A beleza, inteligência, coragem e impetuosidade de Aracy fulminaram Rosa. Viveram esse romance torrencial quando a Alemanha já estava sob o poder do nazismo de Hitler e o Brasil era comandado pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas de vertente antissemita. O governo Vargas alinhava-se com o fascismo de Mussolini e tinha na Alemanha um de seus maiores parceiros no cenário internacional. Foi, então, nesse período, que Vargas fez circular uma resolução secreta na qual vedava que consulados e embaixadas brasileiras concedessem vistos de entrada aos judeus no Brasil. A resolução foi cumprida à risca pela maioria massacrante do corpo diplomático brasileiro. Mas não por Aracy que desafiou Hitler e desobedeceu Vargas e colocou-se em risco de morte ao  conseguir que muitas dezenas de judeus adentrassem o Brasil através do "esquema" por ela montado. Para essa perigosa burla, teve a cumplicidade e a valiosa contribuição de seu já amante e amado, João Guimarães Rosa, cônsul-adjunto que, com ela, rumou no rastro desse risco. Muitas vezes, João, ele mesmo, ao substituir o cônsul-geral, concedeu os vistos de entrada, além de dar cobertura às práticas de sua amada destemida.


Aracy chegou a abrigar judeus perseguidos em sua própria casa, assim como a auxiliar-lhes com dinheiro e mantimentos para a jornada de fuga. Chegava a transportá-los  na mala do automóvel do consulado para serem embarcados para um destino de vida e liberdade no Brasil. Para tanto, aproveitava-se do livre trânsito que lhe era possibilitado por seu passaporte diplomático. 


Uma vez que o Brasil veio a declarar guerra aos países do Eixo em 1942, Aracy e Rosa ficaram sob a custódia do governo de Hitler durante quatro meses até serem, finalmente, trocados por dois diplomatas alemães. Casaram-se nesse mesmo ano de 1942, por procuração, no México, uma vez que no Brasil ainda não havia o divórcio.  


Já viúva de Rosa, foi agraciada em 1982, pelo governo de Israel, com o título de "Justa entre as Nações". O nome de Aracy foi, então, incluído no Jardim dos Justos entre as Nações do Yad Vashem (Museu do Holocausto). Pelo seu heroísmo humanitário, Aracy foi, também, homenageada pelo Museu do Holocausto em Washington.


Tanto ela quanto Rosa ao serem indagados sobre o porquê de, mesmo não sendo judeus, haverem arriscado os seus postos e as suas próprias vidas ao desafiarem as ordens de Hitler e as de Vargas, tinham na língu'alma a mesma resposta: "Porque era Justo".


Fizeram a travessia da vida na mesma canoa até o ano de 1967 quando João Guimarães Rosa veio a falecer nos seus braços. Viver é mesmo muito perigoso... E não é não.



 RAFAEL SANZIO: LA FORNARINA


Se os gênios na história são raros, as histórias de amor sempre se repetem. E não deixam de serem únicas e excepcionais cada uma a seu modo.


Rafael Sanzio, um dos gênios renascentistas junto a Michelângelo e a Leonardo da Vinci, longe dos amores platônicos desses dois mestres que o antecederam, além dos pincéis, tinha conhecida  intimidade com a carne. Sua disposição para misturas ia para muito além das tintas. E como um assíduo frequentador de corpos femininos, estava prometido para a sobrinha de um Cardeal e o seu generoso dote. Mas não generoso o suficiente para evitar que os dotes de Marguerita Luti, a filha de um padeiro, o transtornasse para sempre. E fulgurosa e arrebatadora foi a paixão que arrastou o casal, tida como a mais ardente e luxuriosa dentre as renascentistas, capaz de fazer Dante e Beatriz atravessarem a um só tempo, paraíso e inferno.


Marguerita Luti, então, passou a ser a musa-obsessão de Rafael. É ela a modelo tanto para a Galateia como para a Fornarina. Rafael, então, afastou-se, definitivamente da sua prometida na alta cúpula do Vaticano. E se não podia ficar longe  de Marguerita nos dias em que viveu, não ficou longe dela no dia em que morreu.


Eram as mãos de Marguerita que apertavam as suas em seu último  suspiro no dia de seu aniversário de 37 anos de idade.




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

 GRANDE SERTÃO: VEREDAS - UMA LEITURA QUE NÃO CESSA.


Há mais de dez anos, venho lendo o romance Grande Sertão: Veredas, e sei que não estou sozinha nessa travessia. Todo leitor dessa obra-prima "surregionalista" como a designou Antonio Candido já fez várias leituras e releituras radicais do livro. Que o diga o professor  Willi Bolle, alemão que veio para o Brasil em 1966 com o único fito de estudar o romance e conhecer o seu autor e que não pára de ler o livro há mais de 50 anos!

 Eu, nas minhas humildes leituras desse sertão inesgotável, posso dizer que  já o li sob três vieses: por primeira vez, enredei-me no romance como quem se enovela nos impossíveis do amor, era o impossível do amor que me capturava e me tinha por abatida nas veredas dessas linhas.  

Na segunda vez, fiz uma leitura jurídica e sociológica, detive-me no sertão civilizacional onde não  havia instituições, mas havia a lei fundada nos princípios fundamentais do direito. 

Até que finalizei uma terceira leitura na qual o livro se descortinou para mim com luzes outras. Ao invés de focar apenas em Riobaldo e o seu "monólogo", decidi por ler o livro como o que ele realmente é: um diálogo. E procurei descobrir o máximo de seu interlocutor que é mudo e cuja fala escutamos apenas através da fala do único que nos fala: Riobaldo. Esse interlocutor é um doutor pesquisador da cidade que vem visitar Riobaldo em seu jipe e para quem Riobaldo narra e procura entender a trajetória de sua vida. 

Há quem diga que esse doutor ocupe o lugar do psicanalista. Deveras. Mas, tenho uma outra intuição: esse doutor ocupa o lugar da ciência, da racionalidade. Esse doutor é o racional em diálogo com o trágico personificado em Riobaldo. Eis, então, sob que tintas vejo hoje essa obra: sob as tintas de uma confrontação entre a racionalidade e a tragicidade, confrontação essa a engendrar o homem humano. No mais, sempre haverá outras novas leituras outras. Travessia.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

 UM JAGUNÇO CHAMADO JOÃO 


João não era afeito a discussões ideológicas. Certa feita, estando ele e alguns amigos, dentre eles, Antonio Candido, em um restaurante sobre a baía de Porto Fino na Itália, Candido firmou a sua posição socialista e o apoio a todas as políticas a serem aprovadas no Congresso sob esse viés. João assegurou ser a favor de toda igualdade entre os humanos, mas que esta não era sua maior preocupação.  A maior preocupação do ser humano aqui na Terra, a seu ver, era saber se Deus existia ou não.  


Uma vez eleito para a Academia Brasileira de Letras, resistiu, durante quatro longos anos,  a tomar posse, pois, em sendo cardíaco, asseverava que o seu coração não resistiria a tão grave emoção. Mas, não só. O que fez João reunir pessoas de sua família e passar-lhes instruções para se "algo lhe acontecesse" após a sua posse, com poucas dúvidas de que a  fatalidade derradeira logo lhe bateria a porta, foram as palavras de um pai de santo, por ele consultado, no norte de Minas. Disse-lhe o pai de santo: "No dia em que o nome Guimarães Rosa ecoar na mais alta altura, o homem João irá partir". Foi ou não foi?


No dia 19 de novembro de 1967, três dias após tomar posse como imortal da Academia Brasileira de Letras, o homem João alçou o seu voo definitivo. E partiu para sempre aos 59 anos de idade.




 QUEM TEM MEDO DE MACHADO DE ASSIS?





A única vez em décadas de vida que eu havia ouvido alguém dizer que não suportava Machado de Assis, eu estava nos alvores de meus dezoito anos de idade e escutei o imprevisto de um namorado que transitava em seus vinte e poucos anos. A afirmação me veio como uma rajada de vento invadindo um ar pesado, e leve não foi o meu silêncio ao escutá-la. Claro que não é obrigado a ninguém gostar de um autor, mas por detrás de tanta agressividade, um mais além se adivinhava. Não preciso dizer que, após essa acontecência, o namoro que já se arrastava por anos, duraria apenas mais quatro meses e cinco contos Machadianos; nada mais. Eu Capitulei. E penso, hoje, que detestar Machado era o seu modo de dizer que temia a traição.


Essas memórias me vêm em meio a atual problematização acerca da leitura da obra de Machado de Assis. Sobre a dificuldade de jovens da mesma idade que eu e o meu namorado apavorado de antanho se embrenharem em suas páginas. E não apenas. A rejeição à literatura machadiana reverbera e circula em meio a gente em cujos galhos estão penduradas maçãs maduras. Então, novamente, me pergunto, o que está por detrás dessa problematização e rejeição de um autor que apenas esperava "angariar as simpatias da opinião" e que ainda é o maior, mais inovador e disruptivo escritor brasileiro e para muitos críticos de todo o mundo, ainda reina como o maior da América Latina? Quem tem medo de Machado de Assis?


Não faz tanto tempo,  molhei os olhos ao encontrar obras de Machado integrando uma lista de livros proibidos para as escolas públicas, em uma espécie de Index Librorum Prohibitorum. Desde então, ficou claro para mim que  as palavras dos grandes autores, nelas as palavras de Machado, as suas narrativas desestabilizariam a forma de pensar e atuar na cultura que se pretende forjar pelo status quo atual, afinal, "palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução". 


Para uma cultura que rejeita a reflexão, prima pela pauperização dos conceitos, pelo rechaço à erudição, à concatenação de ideias e aos raciocínios minimamente complexos, Machado nunca poderia ser tão bruxo. Nem seu "humanitismo" tão canino. Nem sua elegância tão deslocada. Nem seu gênio improvável de mulato filho de lavadeira e de um descendente de escravo, nascido no Lavradio e que à custa de diuturno e longo labor cinzelou a sua escrita, algo tão perturbador. 


Sim, caro Machado, palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz uma Nação. O Brasil, por hora, capitulou. E já vão longe os tempos nos quais jovens e livros faziam a Revolução...

 O TRIUNFO DE GALATEIA de RAFAEL SANZIO.




A fim de livrar-se das investidas de Polifemo, Galateia foge em uma carruagem puxada por delfins rumo aos braços de seu amante, Acis.


Os delfins (golfinhos) são, em verdade, o deus Apolo.


Conta Homero em seu Hino a Apolo na Ilíada que, uma vez decidido a erguer um Templo em seu nome e ali instalar um oráculo, Apolo transformou-se em um delfim a fim de angariar os seus primeiros sacerdotes. Dispôs, então, que o chamassem de Apolo Delfínio e o seu Templo seria nomeado como o Oráculo de Delfos, ou seja, o Oráculo do Delfim. Os delfins, golfinhos, são, então, a representação de Apolo e o traduzem em sabedoria e luz.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

 O AUTORRETRATO DE MICHELÂNGELO BUONARROTI.





A despeito do fascínio que o corpo humano e a sua beleza lhe despertavam, Michelângelo era destituído de quaisquer vaidades físicas. Muito pela contrário, vivia como um maltrapilho e pouco frequentava o banho. Dizia ele que era esse o seu modo de emular o "Cristo". Não fez retratos nem de Nobres, nem de plebeus, todas as suas pinturas são relatos de cenas bíblicas ou mitológicas. Mas, nessas cenas retratava as personagens com as imagens das pessoas de seu tempo e, finalmente, na pintura do afresco do Juízo Final para o altar da Capela Sistina, pintou o seu autorretrato. Ele aparece na pele supliciada de São Bartolomeu que a teve  recortada por esfolamento como último martírio. E nessa pele fustigada e estendida pelas mãos do próprio Santo, está a sua efígie.


Se Michelângelo não era belo fisicamente, não era tenebroso como se fez parecer. No entanto, o artista fez um autorretrato fiel, não de sua aparência, mas de seu espírito: atormentado, depauperado e angustiado. 


Em um mundo de valores binários e excludentes,  assim é o retrato daquele que tem o corpo e a alma universais.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

 ETERNO É QUEM CONTINUA A DAR À LUZ 500 ANOS DEPOIS DE MORTO.


Você aprova a "NOVA" fachada para a Basílica de San Lorenzo,  projetada por Michelângelo há mais de 500 anos?


Trata-se, atualmente, de uma das pautas da prefeitura de Florença: A execução de uma "nova" obra de arte de Michelângelo Buonarroti...






quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

 ARTE, RELIGIÃO, SEXUALIDADE E HOMOEROTISMO. A CAPELA SISTINA.





Em tempos de acirrada discussão sobre sexualidade e homoerotismo na arte e açodamento dos defensores da moral e dos bons costumes, por que não começarmos por uma análise honesta do erotismo e do homoerotismo representados nos próprios recintos da Igreja Católica? Por que não começarmos pela residência dos Papas no Palácio Apostólico, onde está a Capela Sistina, locus sagrado para a escolha do representante de Deus na Terra? Por que não começarmos por interrogar Michelângelo e os seus afrescos obscenos compostos para a Capela Santa? 

É certo que o complexo projeto de Michelângelo suscitou paixões que se digladiaram: De um lado, aqueles que se encantaram com o divino transfigurado em carne, pulsões e sangue. De um outro lado, aqueles que protestaram bramindo que os nus dos afrescos, incluindo o de Jesus, eram imorais e antidogmáticos e que as pinturas na Capela seriam muito mais apropriadas às profanas termas e tabernas. Uma  forte onda de puritanismo levou, inclusive, o Papa Paulo IV a chamar um dos assistentes de Michelângelo,  Daniele de Volterra, para cobrir as partes pudendas das imagens.

 Apenas em 1980, a pura pintura de Michelângelo voltou a ser revelada ao mundo, após um árduo e longo trabalho de restauração.  E assim, os afrescos da Capela Sistina voltaram a ser os afrescos da Capela Sistina: carne, sangue, erotismo, homoerotismo, sublimação, imanência, transcendência e santidade. Compreensíveis apenas para os que têm Fé.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

 DESTINO DE MICHELÂNGELO: SER PIETÀ NA VIDA...




O vigor, o brilho renascentista da poetisa Vittoria Colonna, companheira, confidente e interlocutora de Michelângelo não o livrou de, mais uma vez na vida, após a precoce perda de sua mãe, ser o Pietà de uma mulher... 


Além de ter velado a amada intermitentemente em seu leito de morte, foi em seus braços e sob as suas lágrimas aflitas que ela deu o seu último suspiro... 


LAMENTO pela MORTE de Donna VITTORIA COLONNA

Marquesa de Pescara. 


Como é doce para mim dormir o sonho da pedra

O sono  profundo é aquele que as estátuas embalam

Quando o século é infame para fechar as pálpebras

Não ver e não sentir tornam-se virtudes

Cale a boca! Não me acorde! Fale baixo...


Quem fala na sala onde a morte cala

Não, não é o escultor imóvel e sonhador

Nem pelo  fim de Florença eu sofri tanto

Mulher, eu havia que te ver primeiro, antes

De Michelangelo antes de mim antes do Deus vivo,


Eu tenho ciúmes Dele como tenho ciúmes das flores claras

Que você às vezes  misturava ao seu cabelo dourado

Eu chorei muitas vezes na Roma estrangeira

Escola de exílio para o amor separado

O infortúnio pelo qual chorarei amanhã,

Minha Vittoria de olhos fechados que o eterno embeleza,


Você que meus braços nunca irão segurar

Toquei sua mão fria e a tenho em meu coração para sempre,

O arrependimento de não ter ousado tocar na sua testa

0 desejo terrível que nada mais interrompe,

Mulher Colonna na cama em coluna,

Você muda de rosto neste dia angustiante

E a noite das tumbas finais dá a você

As características que dei à capela de San Lorenzo

Para aquela noite que sonha com um mundo diferente.


Amor, você não terá piedade dos meus anos cinzentos

Amor, você não me odeia por muito tempo,

O amor no caixão é amado talvez mais

Nada pode acalmar este pobre velho coração

Ter perdido Vittoria foi ter perdido a minha pátria.


Michelângelo Buonarroti

 FRÁGIL CORPO FEMININO COMO FONTE DE DESAMPARO.


Em razão não apenas dos costumes da época, mas  de uma enfermidade de sua mãe, Michelângelo ficou até os três anos de idade, apartado de sua família e sob os cuidados de uma babá. 


Uma vez retornando ao lar familiar, o menino se viu órfão de mãe muito cedo, aos seis anos de idade. Quatro anos depois, seu pai contrai novas núpcias com aquela que ocuparia o lugar de mãe de seus filhos, mas essa também vem a falecer pouco mais de dez anos depois. A saúde sempre frágil de sua mãe e a vida breve de sua madrasta foram, provavelmente, sinônimos de inexplicável desamparo e abandono maternos para a criança e, posteriormente, para o adolescente. A fugacidade do corpo feminino como uma tragédia afetiva anunciada.


Isso, a meu ver, contribuiu não apenas para a sua tendência ao isolamento, como também, para a  sua preferência por pintar e esculpir corpos masculinos e mesmo masculinizados, ainda que se tratassem de corpos de mulheres. O vigor e a potência masculina à imagem e semelhança da força divina inoculados tanto a corpos de homens como ao de mulheres, através de sua própria arte, apaziguariam a sua angústia de abandono e desamparo...


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Ilustrações:


Sibila Délfica e Sibila Líbica (Profetisas pagãs). detalhes da Capela Sistina. (Michelângelo Buonarroti)



 "MEU PAI E OS IRMÃOS DE MEU PAI ME BATIAM SEMPRE E FORTE, CONSIDERANDO UMA VERGONHA QUE A ARTE TENHA ENTRADO NA FAMÍLIA". 

(Michelângelo Buonarroti)


Inobstante as resistências de seu pai, um nobre falido que pretendia que Michelângelo seguisse uma carreira de magistrado  a fim de resgatar a honra da família e não fosse um "reles pedreiro e pintador de paredes", Michelângelo insistiu em sua vocação. 


Em razão da não permissão paterna para o aprendizado das artes, o que seria uma franca degradação para a família, acompanhada de surras e arremesso de seus desenhos a fogueiras, Michelângelo iniciou as suas atividades de aprendiz em idade além da desejável para um artista plástico, já havendo completado os 13 anos de idade. Mas, uma vez aprendiz, como aprendiz encantou o Mecenas, Lourenço de Médicis, passando a ser, por ele, remunerado. E em passando a ser remunerado, passou a sustentar toda a sua família formada por seus quatro irmãos e o seu pai, sendo desse último um grande protetor e defensor.


Na carta abaixo, enviada por Michelângelo a seu irmão mais novo, Giovanni, quando estava  em uma de suas temporadas de trabalho em Roma, podemos testemunhar o quanto o artista já ocupava o lugar de arrimo da família e repreendia o irmão por causar dissabores ao seu pai:


"Giovanni Simone, 


Diz-se que fazer bem aos bons torna-os melhores, e aos maus, piores. Venho tentando já há alguns anos, através de bons atos e palavras, reconduzir-te a viver corretamente e em paz com teu pai e conosco, mas tu continuas piorando. Não te digo que sejas ruim, mas comportas-te de uma maneira que não me agrada, nem a mim nem aos demais. Poderia fazer-te um longo discurso acerca do teu comportamento, mas seriam palavras, iguais às que já te dirigi.


 Eu, para resumir, digo-te que uma coisa é certa: nada possuis no mundo, tuas despesas e tua hospedagem sou eu quem fornece, e venho fornecendo há algum tempo pelo amor de Deus, acreditando que fosses meu irmão, como os outros. Agora, tenho certeza de que não és meu irmão, pois, se o fosses, não ameaçarias meu pai; és, antes, um animal, e eu como animal irei tratar-te. 


Saibas que quem vê seu pai ameaçado ou agredido é impelido a defendê-lo com sua própria vida. E basta. Digo-te que nada possuis no mundo; e, caso eu ouça a menor coisa sobre as tuas atividades, irei imediatamente até aí a mostrar-te o teu erro e ensinar-te a destruir os teus próprios pertences e incendiar casas e fazendas que tenhas ganhado tu. Não estás onde acreditas estar. 


Se eu for até aí, contar-te-ei coisas que te deixarão banhado em lágrimas, e verás sobre o que fundas a tua soberbia. Hei de repetir-te que, se quiseres comportar-te bem e honrar e respeitar teu pai, ajudar-te-ei como aos demais, possibilitando que dentro em breve monteis um bom estabelecimento; caso contrário, irei até aí e resolverei os teus assuntos de maneira a que compreendas o que és melhor do que jamais o fizeste, e saberás o que tens no mundo, e o verás por onde quer que vás. Nada mais. Suprirei com feitos o que me falta em palavras. 


Michelangelo em Roma. 


PS: Não posso evitar escrever-te ainda um par de linhas: há doze anos venho levando uma vida miserável por toda a Itália, suportando todas as humilhações, sofrendo todas as privações, lacerando meu corpo em todos os labores, pondo a minha própria vida em mil perigos, somente para ajudar a minha família; e agora que começava a reerguê-la um pouco, tu sozinho queres ser quem desordene e destrua em uma hora o que eu havia realizado em tantos anos e com tantas penas. Pelo corpo de Cristo, não será verdade! Estou pronto a destruir dez mil dos teus semelhantes, caso seja necessário. Agora sê esperto, e não provoques quem padece outras tribulações."


*

Ilustração: Davi e Golias (Detalhe da Capela Sistina). Michelângelo 

Buonarrotti.