"MEU PAI E OS IRMÃOS DE MEU PAI ME BATIAM SEMPRE E FORTE, CONSIDERANDO UMA VERGONHA QUE A ARTE TENHA ENTRADO NA FAMÍLIA".
(Michelângelo Buonarroti)
Inobstante as resistências de seu pai, um nobre falido que pretendia que Michelângelo seguisse uma carreira de magistrado a fim de resgatar a honra da família e não fosse um "reles pedreiro e pintador de paredes", Michelângelo insistiu em sua vocação.
Em razão da não permissão paterna para o aprendizado das artes, o que seria uma franca degradação para a família, acompanhada de surras e arremesso de seus desenhos a fogueiras, Michelângelo iniciou as suas atividades de aprendiz em idade além da desejável para um artista plástico, já havendo completado os 13 anos de idade. Mas, uma vez aprendiz, como aprendiz encantou o Mecenas, Lourenço de Médicis, passando a ser, por ele, remunerado. E em passando a ser remunerado, passou a sustentar toda a sua família formada por seus quatro irmãos e o seu pai, sendo desse último um grande protetor e defensor.
Na carta abaixo, enviada por Michelângelo a seu irmão mais novo, Giovanni, quando estava em uma de suas temporadas de trabalho em Roma, podemos testemunhar o quanto o artista já ocupava o lugar de arrimo da família e repreendia o irmão por causar dissabores ao seu pai:
"Giovanni Simone,
Diz-se que fazer bem aos bons torna-os melhores, e aos maus, piores. Venho tentando já há alguns anos, através de bons atos e palavras, reconduzir-te a viver corretamente e em paz com teu pai e conosco, mas tu continuas piorando. Não te digo que sejas ruim, mas comportas-te de uma maneira que não me agrada, nem a mim nem aos demais. Poderia fazer-te um longo discurso acerca do teu comportamento, mas seriam palavras, iguais às que já te dirigi.
Eu, para resumir, digo-te que uma coisa é certa: nada possuis no mundo, tuas despesas e tua hospedagem sou eu quem fornece, e venho fornecendo há algum tempo pelo amor de Deus, acreditando que fosses meu irmão, como os outros. Agora, tenho certeza de que não és meu irmão, pois, se o fosses, não ameaçarias meu pai; és, antes, um animal, e eu como animal irei tratar-te.
Saibas que quem vê seu pai ameaçado ou agredido é impelido a defendê-lo com sua própria vida. E basta. Digo-te que nada possuis no mundo; e, caso eu ouça a menor coisa sobre as tuas atividades, irei imediatamente até aí a mostrar-te o teu erro e ensinar-te a destruir os teus próprios pertences e incendiar casas e fazendas que tenhas ganhado tu. Não estás onde acreditas estar.
Se eu for até aí, contar-te-ei coisas que te deixarão banhado em lágrimas, e verás sobre o que fundas a tua soberbia. Hei de repetir-te que, se quiseres comportar-te bem e honrar e respeitar teu pai, ajudar-te-ei como aos demais, possibilitando que dentro em breve monteis um bom estabelecimento; caso contrário, irei até aí e resolverei os teus assuntos de maneira a que compreendas o que és melhor do que jamais o fizeste, e saberás o que tens no mundo, e o verás por onde quer que vás. Nada mais. Suprirei com feitos o que me falta em palavras.
Michelangelo em Roma.
PS: Não posso evitar escrever-te ainda um par de linhas: há doze anos venho levando uma vida miserável por toda a Itália, suportando todas as humilhações, sofrendo todas as privações, lacerando meu corpo em todos os labores, pondo a minha própria vida em mil perigos, somente para ajudar a minha família; e agora que começava a reerguê-la um pouco, tu sozinho queres ser quem desordene e destrua em uma hora o que eu havia realizado em tantos anos e com tantas penas. Pelo corpo de Cristo, não será verdade! Estou pronto a destruir dez mil dos teus semelhantes, caso seja necessário. Agora sê esperto, e não provoques quem padece outras tribulações."
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Ilustração: Davi e Golias (Detalhe da Capela Sistina). Michelângelo
Buonarrotti.