quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Sobre o clipe da cantora Clarice Falcão (Eu escolhi você)
                                                         Por Andrea Campos

Gostaria de trazer a lume o que, na minha opinião, chocou no clipe:

1) Se fosse um clipe onde fossem visualizadas, tão somente, as genitálias femininas, menos burburinho haveria causado, afinal esse é o lugar do corpo feminino : à exposição, no lugar de objeto. Já ao humanizado corpo masculino está reservado não o lugar de objeto, mas de sujeito. O clipe dá a mesma estatura a ambas as genitálias, a masculina e a feminina.

2) Paradoxalmente, o que choca no clipe é a total deserotização dos órgãos sexuais masculino e feminino. Numa cultura onde apelo erótico e órgãos sexuais devem andar juntos, isso é uma verdadeira desconstrução. Se houvessem laivos pornográficos no vídeo, talvez ele fosse melhor digerido... Inclusive pelo YouTube. A naturalização dos órgãos sexuais parece ter sido o grande pecado.

3)Agora o terceiro ponto crucial que eu gostaria (sonho meu rs) estar discutindo-o animadamente com Judith Butler, Roudinesco, etc, etc : No clipe não há falos, mas tão apenas pênis. Qual a diferença? O falo é o pênis em riste, em estado de ereção. É o falo e não o pênis, o símbolo do patriarcado e dos modelos de opressão do masculino sobre o feminino. Entendendo por fálica toda uma cultura de competição, hierarquização e subjugação. Os pênis quando veiculados na mídia o são de forma fálica, em estado de ataque, destruição e força. E o que vemos no clipe de Clarice : pênis inofensivos, vulneráveis, brincalhões, não ameaçadores, irmanados com a genitália feminina. Isso fulmina de morte o modelo patriarcal. Isso revoluciona e acena pra uma ruptura. Muitos, inconscientemente até, não suportam essa desconstrução. O clipe de Clarice é uma menina que grita: "Olhem como é o Rei nu!". Poucos querem ou estão preparados pra ver e não terem o falo por sustentação...



terça-feira, 13 de dezembro de 2016

                                                               Eu sem Mim
                                                                                  Andrea Campos



Recebo uma notificação do Notificador Virtual de Mensagens: "Há uma notificação de Andrea Campos pra você". Um frio percorre-me a espinha. A alma dá um sobressalto e o coração avexa. Descolei-me de mim? Saí dispersando-me tanto ao ponto desse tanto-ser-eu-inteira colocar-me muito mais do que além da beira de mim? Sim estou à beira de mim e sou eu o à beira de mim e sou eu o precipício. Não posso sequer cair em mim, se já me perdi do eu desse eu em mim esgotado. Esse eu agora cifrado e que petulantemente alheio ao que fui e ao que ainda me sinto sendo vem e notifica-me. Notifica-me de quê? Sou eu a que parte, sou eu a que fica? Peço-me calma, calma, calma... Calma, apenas me escorreu a alma... Belisco-me a pele, sim, sinto-me um eu, talvez um eu sem mim, mas com alguma coisa que ainda me resta, mesmo que o que ainda me reste seja um não-eu-afim. Coagulo-me. Estou intransitória. Mas o fato é que eu notifiquei-me e eu sou um outro de mim, que é a mim desconhecido. Eu é um estranho que me aflige. Como ouso bater-me a porta? Não, não estou pra ninguém, muito menos pra mim mesma. Não, não me abrirei a porta. A porta está fechada e esse meu eu vem morder-me a aorta. Não, não quero ver seus olhos, sim não suportaria olhar-me. Com que humor eu me venho me visitar? Estou impreparada para o impreparável. Preparo-me. Talvez eu me venha só poesia, talvez vingança, talvez desprezo, talvez interrogação. Talvez vulnerável, talvez a ama seca. Não sei. Não quero esse despropósito de eu vindo a mim. Chega. E o Notificador Virtual de Mensagens continua a me importunar: "Há uma notificação de Andrea Campos pra você". Decido olhar-me pelo buraco da fechadura. Não sei se me reconhecerei. Ontem eu vi uma moça na padaria. Ela estava de costas. Eu estava contra um espelho e eu pensei que as suas costas eram eu. Confundi-me de mim. Não estou muito acostumada ao meu corpo e nem sei como mexo os cabelos ou os coloco de frente ou de lado. Passo o dia inteiro vendo-me apenas às vezes. São muitas poucas vezes pra que eu possa ser capaz de me reconhecer. Sim , então vi que ela não era eu ao espelho. A que era eu ao espelho era outra. Cumprimentei-a. Ela fez silêncio. Fomos embora. Mas agora não tenho a menor ideia de como agir. Sinto-me cansada e sem saída engolfada dentro do meu espanto. Algo em mim parou porque se corrompeu a esse outro eu. Decido olhar-me a mim de frente, sem subterfúgios e leio a notificação de mim pra mim: "Você tem 30 solicitações de mensagens". Mensagens? Eu estou me pedindo mensagens? Contatos imediatos do terceiro grau de corpo presente?. Não, não quero estar ausente de mim. Olho-me face a face, não reconheço meu cheiro e nem a minha pele. Sim, eu já havia ouvido falar que a forma como ouvem a nossa voz não é a forma como ouvimos a nossa voz. Então, curiosa sobre esse mim que é outro, debruço-me sobre um mim-outro descolado e que também me estranha. O meu mim-outro também está cansado, não me argui e nem me provoca. Apenas silencia à minha espera. Recebo-o em meus braços. Ainda estamos descoladas e apenas lhe pergunto como tem passado. Ela-eu me olha num sorriso em semi-tom como se eu já soubesse a resposta. Mas o nosso lugar não é aqui. O nosso lugar é um para além de nós. Afinal, mesmo divididas, temos em comum um antes, um agora e um porvir ... Digo-lhe: Preciso descansar-me em mim... Ela se aconchega a mim e me deita em si... E assim seguimos, juntas e resignadas, para sempre íntimas-desconhecidas... Fartas e sem nomes em nosso indissolúvel pacto de sangue.


Pablo Picasso

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

                                                           Encontros e Desencontros
                                                                                             Andrea Campos


O Livro de Sebo

Não tendo, ainda, havido o encontro, nos encontrávamos no desencontro. Mas eis que um dia eu o encontro para desencontrar-me de vez. Perdendo-me em vielas, não uma letra, mas um cheiro me sucumbiu. Não fui atraída por uma frase, mas por uma epifania. E foi com as pálpebras cerradas e as narinas dilatadas que adivinhei o seu título. Então ele se aconchegou, inesperadamente, em meus braços. Minhas mãos tremiam ao tocar a sua tez pálida, de um amarelo ocre, parcamente visitada pelo sol. Segurei suas orelhas esmaecidas e sussurrei-lhe o ininteligível. Sequer eu poderia escutar o que reverberava tão profundamente de dentro em mim. Tentei ouvir o eco que se arrepiava das paredes de meu desejo. Estava arranhado, carcomido, heranças de sua vocação para a promiscuidade. Encrustei-me para logo após lançar-me toda a ele, deixá-lo penetrar-me, fazer de mim um delírio de olhos fixos em suas fantasias. Com os dedos ensalivados, revirava-o sobre o meu colo e, de quando em quando, comovida, fechava os olhos e puxava-o de encontro ao meu seio arfante. O seu cheiro provocava-me um devaneio atávico, arremessando-me a um tempo outro, tempo de meu eu  desinventado. De repente, ele se irrompeu em um gozo de letras em capítulos sem fim e, assim, ele, um Livro de Sebo, fecundou o teu nome em mim.


Balcão de Bar

"No que você está pensando?". Há anos que você me pergunta no que eu estou pensando e derrama sobre mim esses olhos de compaixão inenarráveis. Você me procura no ar de seus dias tatuando o meu ar no ar que transborda de espelhos, tentando desvendar-me as expressões com as expressões de seu dicionário. Inútil. Sabe no que penso? Exatamente nisso: na inutilidade. Na inutilidade minha, na inutilidade sua, na inutilidade de tudo. Penso na minha carne como o derradeiro limite de tudo que é inútil e, ao capitulá-la, ela se revolta contra mim e, para além de mim, sangra. Sangra na busca de um sentido para o que tenho sentido, eu que sou um significado sem significante em busca de significação. E sabe o que isso significa? Que todo esse movimento, todo esse burburinho ao meu redor me enche de inércia e silêncio. Que vejo cada um dos rostos que me circundam se afogarem, um a um, na desesperança, que toda essa dança de luz e cor não entra no túnel escuro que atravesso agora. Tento acomodar um grito na parede do tempo e só o que ouço é esse fio de saliva que se desprega de sua boca. Pensava que eu estava tão somente triste à espera de um inominável? De uma hora ebúrnea que não desabrochou do lusco-fusco de meu dia? Ah! Como você é ingênuo e faz de mim tão pouco! A espera, mesmo que longa, tem gotas de tristeza alegre. E eu não sou alegre nem sou triste porque a alegria e a tristeza resultaram em mim inúteis. Não, não chore, é inútil! Embaraça o seu olhar contra o meu, alarga nossas distâncias e eu gosto quando você me olha, quando você me sente, quando você me exclama com esse seu ar insuportável de interrogação... Mas o fato é que se eu sinto que não tenho mais tanto tempo, há muito tempo e por muito tempo estarei ainda aqui, debruçada sobre o que há de mim e de você sobre esse balcão... Já vai? Não, não desvie os seus olhos de mim, não se apague de minha tinta, não me deixe! É inútil. Há uma tinta minha fazendo escorrer essa tinta sua e o gelo derreteu-se antes de ser quebrado . Quer um copo de gim? E, afinal, no que você está pensando?