DA
DOCÊNCIA COMO SACERDÓCIO
(REFLEXÕES A PARTIR DE UMA "FAKE
NEWS")
Tem
circulado nas redes sociais, já há alguns anos, um modelo de
contrato de trabalho que seria destinado a ser celebrado entre
Conselhos de Educação Escolares e Professoras em São Paulo no ano
de 1923. O contrato seria um anexo (ainda não constatei a
procedência dessa informação) de um artigo escrito pela
pesquisadora Jane Soares de Almeida sobre as transformações da
carreira docente e sobre a inserção das mulheres nessa atividade,
seus desafios e suas limitações. Pude verificar que a minuta é uma
tradução ipsis litteris de um modelo de minuta contratual da
Associação Escolar de Ohio nos EUA do mesmo ano, assim como de um
modelo de minuta contratual espanhola, também do mesmo ano. Até
mesmo as datas e os valores salariais a serem pagos convergem. Como a
ortografia do contrato em português está em franco desacordo com a
ortografia vigente na década de 20 do século passado, tudo leva a
crer que se trata de um contrato falsiê. No entanto, ao fazer o
levantamento de algumas leis acerca da atividade docente publicadas
no Brasil nos séculos XVIII, XIX e inícios do século XX, assim
como, ao resgatar leituras pretéritas, posso afirmar que mesmo que o
contrato seja falso, o seu espírito carrega a verdade. Ou seja,
trata-se de um corpo falso encarnado por uma alma verdadeira. Freud
já dizia "o inconsciente, às vezes, mente", e se mente,
mente sobre uma verdade encoberta. Vamos fazer, então, uma
arqueologia da verdade encoberta por essa "Fake News"?
Como
exemplos das cláusulas constantes da minuta contratual falseada e
viralizada na Internet estão as de que as professoras, para o
exercício da docência, estariam terminantemente proibidas de se
casarem (como pude verificar ser procedente até o século XIX), de
andarem em companhia de homens, de beberem, de fumarem ou de flanarem
em sorveterias, um ambiente de coqueteria por excelência em inícios
do século passado. Nos textos publicados em jornais de grande
circulação no Brasil como O Globo e alhures, sobre o conteúdo do
contrato, frisa-se o caráter machista de suas cláusulas. Sem
dúvida. Mas, o que me encantou nesse contrato, sim, digo que me
"encantou" e não que me causou assombro ou indignação,
foi verificar como, através desse contrato-ficção, podemos
constatar como a prática docente que temos vivenciado nos últimos
dez séculos foi preponderantemente prescrita pela Igreja cristã
durante a Idade Média, e no que concerne ao ensino superior, a
partir da Baixa Idade Média.
Prática
essa, portanto, que foi, inicialmente, monopolizada pelos religiosos,
integrando inextricavelmente os seus sacerdócios. Ao ser a prática
docente permitida a leigos, quer fosse nas escolas paroquiais, quer
fosse no ensino universitário inaugurado pela Universidade de Paris
cuja direção era do bispado com intervenção papal, aqueles que se
dispusessem a ser professores deveriam seguir, em vários aspectos, o
mesmo modus vivendi dos religiosos. O celibato e a abstinência
sexual eram alguns desses aspectos. Não há como não nos lembrarmos
da história do filósofo Pedro Abelardo cuja amante Heloísa,
resistia a com ele casar-se, ainda que estivesse grávida. O
casamento era um descrédito para um professor, maculava a sua
reputação. Mesmo em sendo esse professor, um leigo, haveria o mesmo
que gozar da mesma estatura moral de um clérigo cuja vida deveria
ser de entrega exclusiva ao aprofundamento de seus estudos, de
alcance da sabedoria e de dedicação a seu alunado.
Ser
professor ou professora, portanto, a partir da Idade Média, passou a
significar o exercício de uma função própria dos clérigos e a
adesão a esse sacerdócio. É notório o monopólio da atividade
educacional por irmandades e congregações religiosas até finais do
século XX, tendo sido o primeiro professor de cultura ocidental em
solo brasileiro, o Padre José de Anchieta. Colégios de padres e
colégios de freiras foram máximas referências educacionais durante
séculos. Não causa espécie, portanto, que mesmo as instituições
de ensino laicas, mesmo as escolas públicas, estivessem imbuídas
das prescrições comportamentais ditadas pelas escolas de ensino de
tradição cristã, fossem católicas ou protestantes. Esse caráter
sacerdotal emprestado ao ensino, talvez nos ajude, também, a
compreender a histórica baixa remuneração da atividade docente em
países como o Brasil, afinal, uma vez que integra um "sacerdócio",
entende-se que faça parte indissociável do ensino, o seu caráter
dadivoso traduzido por extremosa doação e obstinado sacrifício.
Quanto
a aquilatar o quão machista são as cláusulas constantes da minuta,
sendo que muitas estavam em real acordo com os costumes daqueles
tempos, o melhor seria cotejá-las com as cláusulas de um modelo de
contrato a ser celebrado com os professores na mesma época. Muito
provavelmente, concluiremos que as normas impostas às moças eram
bem mais restritivas e limitantes do que aquelas destinadas aos
rapazes, uma vez que, historicamente, temos estado agrilhoados a um
modelo patriarcal onde a desigualdade de gênero é assaz eloquente.
No entanto posso já adiantar que aos homens era terminantemente
proibido serem professores de meninas com idade de até 14 anos.
Logo,
no que tange às cláusulas da minuta em comento e à leis e costumes
dos séculos XX e anteriores, penso que a tradição de ensino
fundada pelas instituições cristãs a partir da Idade Média,
emprestando a esse ofício um caráter fortemente sacerdotal, é a
que maior influência exerce em seus contornos e fala mais alto. Mais
do que o seu incontroverso caráter "machista". Pois,
lembremo-nos que o professor Pedro Abelardo, citado acima, ao haver
engravidado uma aluna e casado-se com ela, agindo em total
desconformidade com o que se esperava do comportamento de um
professor, foi violentamente emasculado. E morreu eunuco.