quinta-feira, 9 de abril de 2020


SOBRE A "MAGIA" DA CLOROQUINA: UM DEBATE PÓS-ILUMINISTA.




O que eu acho quase inacreditável (se não fosse real) são pessoas leigas querendo discutir com pesquisadores e cientistas, um assunto de alta ciência, disputando com estes acerca de matéria de suas competências para o qual passaram longos anos de suas vidas estudando e ainda passam...
Por mais que tenhamos presenciado a crise dos saberes especializados, a crítica que permeia essa crise passa pela alienação do especialista, não pela desmoralização dos saberes especializados: há conquistas da modernidade que não podem ser negaceadas.
Não se contrata um engenheiro para que execute uma intervenção cirúrgica cardíaca, como não se contrata um médico para que levante uma catedral.
Tenho muitas ressalvas ao tão atual decantado "lugar de fala", mas há aqueles que são incontornáveis: posso até falar em nome dos índios e dos portadores de deficiência, mas jamais em nome de um químico ou de um físico nuclear acerca de seus objetos de estudo.
Como pode o achismo nosso, por mais qualificados que sejamos em nossas profissões, sobrepujar o entendimento dos estudiosos em um assunto para os quais as controvérsias sequer foram solucionadas? Será que seria uma forma de nos desviarmos de nossas próprias funções e responsabilidades, de tirarmos a atenção sobre aquilo que é de nossa competência e que nos cabe? Ou somado a tudo isso, um perigoso caráter egoico?
É um fenômeno que não se viu na Idade Clássica. Lembremo-nos que durante a nefasta Peste Antonina que matou milhares de pessoas no Império Romano, os papéis do Imperador Marco Aurélio e do seu, então, maior médico, o grego Galeno, eram bem delimitados e sustentados pelo respeito recíproco às funções a serem desempenhadas pelo imenso estadista e pelo não menos imenso cientista em grande cooperação.
Sequer poderíamos dizer que o atual fenômeno é puramente medieval e obscurantista, embora se irmane com ele em diversos pontos. Não é puramente medieval e obscurantista, uma vez que, pelo menos até agora, não vi ninguém propor a sobreposição de magias e feitiçarias aos tratamentos médicos, como ocorreu durante a Peste Bubônica na Baixa Idade Média.
Em outras palavras, o leigo arvorar-se de detentor de uma verdade científica de uma ciência que não conhece é um fenômeno-sintoma da crise do pensamento e da cultura na contemporaneidade. É um fenômeno pós-iluminista que merece o debate. E, mais que tudo, um fenômeno de governos populistas que merece o COMBATE.