SOBRE A "MAGIA" DA CLOROQUINA: UM
DEBATE PÓS-ILUMINISTA.
O
que eu acho quase inacreditável (se não fosse real) são pessoas
leigas querendo discutir com pesquisadores e cientistas, um assunto
de alta ciência, disputando com estes acerca de matéria de suas
competências para o qual passaram longos anos de suas vidas
estudando e ainda passam...
Por
mais que tenhamos presenciado a crise dos saberes especializados, a
crítica que permeia essa crise passa pela alienação do
especialista, não pela desmoralização dos saberes especializados:
há conquistas da modernidade que não podem ser negaceadas.
Não
se contrata um engenheiro para que execute uma intervenção
cirúrgica cardíaca, como não se contrata um médico para que
levante uma catedral.
Tenho
muitas ressalvas ao tão atual decantado "lugar de fala",
mas há aqueles que são incontornáveis: posso até falar em nome
dos índios e dos portadores de deficiência, mas jamais em nome de
um químico ou de um físico nuclear acerca de seus objetos de
estudo.
Como
pode o achismo nosso, por mais qualificados que sejamos em nossas
profissões, sobrepujar o entendimento dos estudiosos em um assunto
para os quais as controvérsias sequer foram solucionadas? Será que
seria uma forma de nos desviarmos de nossas próprias funções e
responsabilidades, de tirarmos a atenção sobre aquilo que é de
nossa competência e que nos cabe? Ou somado a tudo isso, um perigoso
caráter egoico?
É
um fenômeno que não se viu na Idade Clássica. Lembremo-nos que
durante a nefasta Peste Antonina que matou milhares de pessoas no
Império Romano, os papéis do Imperador Marco Aurélio e do seu,
então, maior médico, o grego Galeno, eram bem delimitados e
sustentados pelo respeito recíproco às funções a serem
desempenhadas pelo imenso estadista e pelo não menos imenso
cientista em grande cooperação.
Sequer
poderíamos dizer que o atual fenômeno é puramente medieval e
obscurantista, embora se irmane com ele em diversos pontos. Não é
puramente medieval e obscurantista, uma vez que, pelo menos até
agora, não vi ninguém propor a sobreposição de magias e
feitiçarias aos tratamentos médicos, como ocorreu durante a Peste
Bubônica na Baixa Idade Média.
Em
outras palavras, o leigo arvorar-se de detentor de uma verdade
científica de uma ciência que não conhece é um fenômeno-sintoma
da crise do pensamento e da cultura na contemporaneidade. É um
fenômeno pós-iluminista que merece o debate. E, mais que tudo, um
fenômeno de governos populistas que merece o COMBATE.