segunda-feira, 30 de novembro de 2015

                                                       QUE HORAS ELA VOLTA?
         Reflexões sobre o filme “Que horas ela volta?” de Anna Muylaert.
                                                                                                           Andrea Campos







A que horas se volta a um lugar quando não se sabe o lugar pra onde se volta? Na história brasileira os lugares e os não lugares foram secularmente colonizados dentro de uma lógica de castas inamovíveis ou de muito pouca mobilidade. A nossa principal “revolução” que veio a ser  a conquista de nossa independência, foi encetada por aqueles que estavam no poder durante os quase quatrocentos anos de nossa dependência, de nossa subordinação a um poder estatal e político outro. Tiramos o rei do poder e entronizamos esse mesmo rei no poder. Mudamos apenas o seu nome, de príncipe para Imperador. O mesmo poderíamos dizer da “libertação” dos escravos, foram libertos das senzalas para continuarem relegados à mesma senzala, a situações de exclusão e miserabilidade maquiadas por condições sociais e de trabalho, não poucas vezes, análogas às de escravos. Mais perto de nós, lembraríamos de nosso sofrido processo de redemocratização, no qual, após um período de 20 anos de ditadura militar, o primeiro presidente civil, mesmo que indiretamente eleito, faleceu às vésperas de sua posse, assumindo a Presidência da República um civil colaborador e presidente do partido da situação anterior...

Mas, se os lugares, secularmente foram tão engessados no Brasil e entre nós brasileiros, porque iniciamos, então, esse texto indagando sobre um lugar nosso que desconhecemos? Responderíamos que, simplesmente, porque a dinâmica dos lugares, como na brincadeira infantil da dança das cadeiras e de quem senta nelas ou fica sem sentar, tem mudado e muitos de nós, mesmo sabendo que tem direito a um lugar, a uma cadeira, ainda não sabe e conhece em qual lugar ou cadeira irá sentar ou deixar de sentar-se. E é sobre a troca de lugares, a conquista de lugares, a mobilidade de lugares e, principalmente, sobre a invenção de um novo lugar para os brasileiros e para o Brasil que trata o belo e bem sucedido filme “Que horas ela volta?” da cineasta carioca Anna Muylaert.

O enredo do filme está centrado na visita da filha nordestina de uma empregada doméstica, também nordestina, que trabalha, ou melhor, serve numa casa de classe média alta no bairro do Morumbi em São Paulo. A filha de cerca de dezoito anos, faz, por primeira vez, o mesmo trajeto que foi feito por centenas de milhares nordestinos, mormente durante o século XX, evadidos do flagelo da seca e da falta de oportunidades. Mas ela não vai sacolejando dentro de um pau-de-arara, ela segue altiva em busca não de um lugar de subalternização, mas de um lugar de reafirmação de sua dignidade. E essa dignidade, a seu ver, reside no fato de não ser melhor, mas também, não ser pior do que ninguém. Ao encontrar a sua mãe que não via há mais de dez anos, mesmo sabendo que o seu trabalho é doméstico, estranha e esboça uma revolta por saber que a mãe a está levando para se hospedar na casa onde ela trabalha, já que o local onde trabalha é o mesmo local de sua moradia, o que nada mais é do que a perpetuação do modelo escravagista. A casa onde ela ficará é a casa “do outros”, e ela demanda para si uma casa e uma  vida “próprias”, um “lugar” próprio. Inicia-se aí, no filme, a confusão, a transmutação e a costura de lugares novos para um cidadão brasileiro que se propõe ser novo.

Mas, essa troca de lugares ou conquista de lugares nessa espécie de “dança das cadeiras” não ocorre sem resistências, não apenas daqueles que secularmente lotearam essas cadeiras desde a divisão da propriedade de terras no Brasil em 15 Capitanias Hereditárias, mas daqueles que silentes e vulnerabilizados tiveram as suas vidas loteadas e formatadas nesse grande loteamento-síntese da sociedade brasileira, então, germinante. Quando a filha da empregada nordestina, herdeira do escravagismo, adentra na sala de jantar da família herdeira das Capitanias Hereditárias e diz que prestará vestibular para a Faculdade de Arquitetura da USP, a reação é de incômodo quanto a esse “atrevimento”. O incômodo, que transparece mais acentuadamente na expressão facial da dona da casa, logo é abrandado, por sua ilação de que “prestar” vestibular não significa “passar” no vestibular para uma das melhores Universidades da América Latina, passaporte para uma factível bem-sucedida mobilidade social.

Bárbara, a dona da casa, transmite em uma cena emblemática a Jéssica, a filha da empregada Val, que não adianta “chegar lá” se o “lá” não é o seu lugar de pertencimento. Nessa cena, Bárbara, na hora do café-da-manhã se oferece a fazer suco de lima da pérsia para Jéssica que fica sentada na mesa da cozinha, enquanto Bárbara trabalha diante do liquidificador. Os lugares foram efetivamente trocados. No entanto, ao entregar o suco para Jéssica que, ato contínuo, bebe-o, esta não suporta o seu gosto intragável (ou seja, ela não tem o gosto refinado). Jéssica capta a mensagem e, logo, empurra o suco goela abaixo, pois se o lugar de beber suco de lima da pérsia não é de seu pertencimento, ele o é de seu “merecimento”.

Quiçá pretendendo fazer a metáfora da história social brasileira, Anna Muylaert não deixa escapar um aspecto tão caro das medidas de nossa veste social: a sexualidade. Em “Casa Grande e Senzala”, o sociólogo pernambucano Gilbero Freyre, com maestria delineou como os lugares ocupados na vida sexual do brasileiro refletiam as relações de poder, opressão e afetuosidade. A complexidade do mosaico sexual brasileiro vai além pois nele está acentuada a promiscuidade não apenas entre brancos, negros e índios, mas a confusão entre afeto e subjugação. A negra é subjugada e explorada pelo senhor branco, mas goza de chamegos com o seu “nhõ-nhõ”. No filme, essa dinâmica é retratada pela relação entre a empregada Val e o menino Fabinho, o filho da dona de casa que foi criado por ela, que teve ela como uma “segunda mãe” que com ele passava o dia enquanto a mãe saía para trabalhar, é dele, do menino Fabinho a pergunta que dá título ao filme, feita por ele a Val em relação a sua mãe ausente: “que horas ela volta?”. Já adulto, fazendo vestibular, o menino tem uma relação ambígua com a sua eterna babá, pois ainda dorme com ela abraçado... A reprodução dessas relações de poder e afeto também se instala entre a recém-chegada Jéssica e o dono da casa, José Carlos. Este se sente inteiramente à vontade para seduzir a moça, filha da empregada, mesmo sendo um homem artista e bon vivant, ou seja, a princípio refugindo ao modelo coronelista tradicional, não estaria integrado ao modelo machista do senhor de engenho, mas, como está! José Carlos não trabalha, vive de renda e passa o dia em casa enquanto a mulher trabalha fora. Ao final do filme, não tendo tido sucesso em sua empresa de sedução, pede desculpas à mãe da menina, a empregada doméstica, já que ele tinha consciência de que estava tirando partido de seu lugar de poder, e vai dormir (ele passa o dia dormindo).

Ao final, Jéssica passa no vestibular, conquistando uma das disputadíssimas vagas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, enquanto que Fabinho, o filho dos donos da casa que, também, estava prestando vestibular para a USP, não passa... O passaporte para a mobilidade social está ganho... Ato contínuo, Val pede demissão, aluga uma casinha no subúrbio e com as suas economias investe em um negócio próprio. O rapaz Fabinho embarca para uma temporada de “estudos” na Austrália.

A Dança das Cadeiras protagonizada pelo Feminino

É importante frisar que essa confusão de lugares é protagonizada, principalmente, pelo feminino. Qual o lugar do feminino pós-revolução feminista? O lugar de Val é o lugar de uma nova profissional doméstica que tem, nos últimos tempos, conquistado direitos de isonomia constitucional, ou continua a ser o lugar da “ama de leite”, afetuosamente aconchegada nos braço de seu nhõ-nhõ? A incerteza quanto aos lugares a serem ocupados pelo feminino permeia todas as classes sociais nas últimas gerações, inclusive as classes de elite, pois Bárbara é uma nova mulher da elite, não mais é uma dondoca que passa o dia em torno de boutiques e salões de beleza, mas uma mulher que trabalha e passa o dia fora, sacrificando, inclusive, as suas funções maternas delegadas à sua funcionária doméstica Val. Esta última, por sua vez, delegou o exercício de sua maternidade a “Sandra”, a moça com a qual deixou a sua filha Jéssica para que fosse por ela criada no Nordeste, enquanto ela trabalhava no Sul maravilha e providenciava o seu sustento. O lugar da mãe parece ser um lugar cuja conquista é relegada a uma perpétua “terceirização”. Terceirização essa que não é rompida, sequer pela “revolucionária” Jéssica que deixou seu filho bebê no Nordeste para vir estudar em São Paulo e progredir na vida. Seria o jogo da maternidade um jogo eterno de soma zero? No qual as mães estariam, para sustentarem as suas autonomias, fadadas a não serem mães e os filhos a não serem filhos de sua próprias mães. Esse lugar da mãe é reabilitado não por Jéssica, mas por Val que tem como resposta da filha, ser por primeira vez, chamada por ela de “mãe”. É Val quem rompe a cadeia do abandono materno, aquela que produz nos filhos a interminável pergunta “que horas ela volta?”, ordenando que Jéssica traga o seu bebê Jorge para ser criado junto a elas.

Ainda podemos dar conta desse otimismo?

O filme de Anna Muylaert foi produzido quando ainda estávamos gozando dos frutos de programas sociais que, de fato, tiraram o Brasil e os brasileiros dos rincões da miséria, que abrandaram a nossa fome, que incluíram as classes D e E em uma nova e promissora classe média, a tão falada classe C. Programas sociais que tornaram uma grande parte de nós “consumidores”. Muito foi conquistado, mas, muito tristemente, vemos hoje, os ganhos serem pouco a pouco, quando não, abruptamente, perdidos. O retorno das migrações dos nordestinos que deixam as suas recém-adquiridas motos de tanques vazios em frente às suas casa e tomam um ônibus rumo a estados do Centro-Sul em busca de emprego é emblemático desse novíssimo estado de coisas. Isso nos anuncia um eterno retorno ao engessamento, à imobilidade, ao abandono. Não bastasse sermos filhos de uma pátria de pais corruptos, o filme de Muylaert anuncia que apesar de sermos filhos do abandono materno, estaríamos sendo reencontrados por nós mesmos e redentoramente voltando ao aconchego do lar. Infelizmente, nos dias que correm, para além do otimismo do filme, voltamos a ocupar o lugar da derrelição.

Finalmente, “Que horas ela volta?”


Se o filme de Anna Muylaert se propôs a calar essa pergunta ou torná-la obsoleta, nós brasileiros, continuamos sem ter a resposta. Que horas voltam as mães, que hora voltam os filhos, que horas voltam os pais, que horas volta a justiça social,  que horas volta a honestidade, que horas volta o compromisso, que horas volta a seriedade, que horas volta a solidariedade? É possível ter de volta as coisas que, talvez, nunca tivemos? E ao (re)tê-las, onde colocá-las, qual serão os seus lugares? Arriscaria responder que esse lugar a ser habitado deve ser sempre o lugar da dignidade da pessoa humana. Lugar inamovível e que deve estar sempre livre e desocupado para aqueles que queiram vir e com braços abertos para receber os que queiram voltar, não importa a hora.








Ce qui m'allume
c'est l'allure du poème
c'est l'emblème du soleil
qui se couche sur la scène
d'une vie qui s'écoule
sans cesse
comme un fleuve
envers la mer
sans regret.

Ce qui m'allume
c'est le sourire
dans la tristesse,
c'est la jouissance du corps
qui me laisse,
c'est le vent qui passe
et me caresse.

Ce qui m'allume
c'est la neige endormie
dans l'hiver,
c'est le bref soupir
d'une fleur,
c'est le courage
d'un vol du coeur.

Ce qui m'allume
c'est le feu
d'un amour sans passé
qui me jette au futur
de l'éternité.

Andrea Campos



terça-feira, 17 de novembro de 2015

                                                             A Morte de um Rio
                                                                               Andrea Campos



Amanheceu em noite o dia:
Ele está morto.

Ele está morto
e não lhe cabem
as cinzas de sua morte
e nem o tropel
de minhas lágrimas.

Ele está morto.
Morto de morte matada.
Morte que escorre trôpega
em languidez robusta.
Morto de morte faminta
que arrasta morte
em morte regurgitada.

Morto de morte
que lhe transborda
pelas escarpas
e perfura-lhe
o vórtice profundo.

Ele está morto
e não é doce a sua morte,
mas acre como um cortejo
de noiva morta
imantada
por um véu de lama.

Ele está morto
e vagueia vadio,
negaram-lhe a sepultura,
o seu leito é um caixão vazio.

Morto de morte de sede,
Morto de morte de fome,
Morto de morte de frio.

Deem-lhe a extrema-unção!
Tragam-me seu corpo sombrio!

Ele está morto.

Ele está morto
e gota a gota,
na curva de meu coração
se enterra a morte de um rio.



quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Trocou os móveis,
queimou suas roupas,
varreu sua sombra,
mudou de endereço,
sumiu do emprego,
rasgou suas fotos,
ceifou suas memórias,
tosou o cabelo,
se deu outro nome,
deixou seus trejeitos.

Maquiou seu tempo,
lavou suas marcas,
reinventou seu passado,
forjou novos sonhos,
renegou seus desejos,
apagou sua história.

Como nada disso adiantou,
jogou-se da ponte
e  enfim se livrou
de seu último vestígio.

Andrea Campos


É pela ponta dos dedos
que escorre o meu beijo,
tatuagem de tinta
no vazio frio das telas.

É pela ponta dos dedos,
que todo o meu corpo
se exangue e se traduz
na letra traçada
sobre a íris de teus olhos.

É pela ponta dos dedos
que brota o meu sonho
eriça o meu desejo,
e ferve o meu apelo.

É pela ponta dos dedos
que meu nome acaricia
o teu nome, e o meu sinal
enlaça o teu sinal.

Poesia, ardor e sangue
vão tecendo minha paisagem,

Um ponto final, eu me apago
e sou tua miragem.


Andrea Campos



terça-feira, 10 de novembro de 2015

O que eu amo em ti
não são teus lábios afogueados,
cava e cova de meu desejo.
O que eu amo em ti não são as gotas de orvalho
sobre a relva de teu corpo onde  brinca
o meu sonho inominado.

O que eu amo em ti não é teu hálito
recendendo a barro no estio,
nem teu gesto hirto e grave
em meu instante vazio.

O que eu amo em ti não é
a última centelha que acendes
na escuridão, nem as fatias de tua
sombra sob a luz.
Não são tuas mãos,
pedras pousadas sem asas,
entrelaçando as horas de meu dia.

O que eu amo em ti é o teu íntimo detalhe
indefinível e indefinido,
é esse cisco de areia que plantas em meu olhar
sobre o  deserto alvorecido.

É lá onde cabe e descabe o meu amor
e eu me transbordo toda
entre o silêncio e a palavra infinita.

Andrea Campos




Egon Schiele