QUE HORAS ELA VOLTA?
Reflexões sobre o filme “Que horas ela
volta?” de Anna Muylaert.
A que horas se volta a um lugar
quando não se sabe o lugar pra onde se volta? Na história brasileira os lugares
e os não lugares foram secularmente colonizados dentro de uma lógica de castas
inamovíveis ou de muito pouca mobilidade. A nossa principal “revolução” que
veio a ser a conquista de nossa
independência, foi encetada por aqueles que estavam no poder durante os quase
quatrocentos anos de nossa dependência, de nossa subordinação a um poder
estatal e político outro. Tiramos o rei do poder e entronizamos esse mesmo rei
no poder. Mudamos apenas o seu nome, de príncipe para Imperador. O mesmo
poderíamos dizer da “libertação” dos escravos, foram libertos das senzalas para
continuarem relegados à mesma senzala, a situações de exclusão e miserabilidade
maquiadas por condições sociais e de trabalho, não poucas vezes, análogas às de
escravos. Mais perto de nós, lembraríamos de nosso sofrido processo de
redemocratização, no qual, após um período de 20 anos de ditadura militar, o
primeiro presidente civil, mesmo que indiretamente eleito, faleceu às vésperas
de sua posse, assumindo a Presidência da República um civil colaborador e
presidente do partido da situação anterior...
Mas, se os lugares, secularmente
foram tão engessados no Brasil e entre nós brasileiros, porque iniciamos,
então, esse texto indagando sobre um lugar nosso que desconhecemos?
Responderíamos que, simplesmente, porque a dinâmica dos lugares, como na
brincadeira infantil da dança das cadeiras e de quem senta nelas ou fica sem
sentar, tem mudado e muitos de nós, mesmo sabendo que tem direito a um lugar, a
uma cadeira, ainda não sabe e conhece em qual lugar ou cadeira irá sentar ou
deixar de sentar-se. E é sobre a troca de lugares, a conquista de lugares, a
mobilidade de lugares e, principalmente, sobre a invenção de um novo lugar para
os brasileiros e para o Brasil que trata o belo e bem sucedido filme “Que horas
ela volta?” da cineasta carioca Anna Muylaert.
O enredo do filme está centrado
na visita da filha nordestina de uma empregada doméstica, também nordestina,
que trabalha, ou melhor, serve numa casa de classe média alta no bairro do
Morumbi em São Paulo. A filha de cerca de dezoito anos, faz, por primeira vez,
o mesmo trajeto que foi feito por centenas de milhares nordestinos, mormente
durante o século XX, evadidos do flagelo da seca e da falta de oportunidades.
Mas ela não vai sacolejando dentro de um pau-de-arara, ela segue altiva em
busca não de um lugar de subalternização, mas de um lugar de reafirmação de sua
dignidade. E essa dignidade, a seu ver, reside no fato de não ser melhor, mas
também, não ser pior do que ninguém. Ao encontrar a sua mãe que não via há mais
de dez anos, mesmo sabendo que o seu trabalho é doméstico, estranha e esboça
uma revolta por saber que a mãe a está levando para se hospedar na casa onde
ela trabalha, já que o local onde trabalha é o mesmo local de sua moradia, o
que nada mais é do que a perpetuação do modelo escravagista. A casa onde ela
ficará é a casa “do outros”, e ela demanda para si uma casa e uma vida “próprias”, um “lugar” próprio.
Inicia-se aí, no filme, a confusão, a transmutação e a costura de lugares novos
para um cidadão brasileiro que se propõe ser novo.
Mas, essa troca de lugares ou
conquista de lugares nessa espécie de “dança das cadeiras” não ocorre sem
resistências, não apenas daqueles que secularmente lotearam essas cadeiras
desde a divisão da propriedade de terras no Brasil em 15 Capitanias
Hereditárias, mas daqueles que silentes e vulnerabilizados tiveram as suas
vidas loteadas e formatadas nesse grande loteamento-síntese da sociedade
brasileira, então, germinante. Quando a filha da empregada nordestina, herdeira
do escravagismo, adentra na sala de jantar da família herdeira das Capitanias
Hereditárias e diz que prestará vestibular para a Faculdade de Arquitetura da
USP, a reação é de incômodo quanto a esse “atrevimento”. O incômodo, que
transparece mais acentuadamente na expressão facial da dona da casa, logo é
abrandado, por sua ilação de que “prestar” vestibular não significa “passar” no
vestibular para uma das melhores Universidades da América Latina, passaporte
para uma factível bem-sucedida mobilidade social.
Bárbara, a dona da casa,
transmite em uma cena emblemática a Jéssica, a filha da empregada Val, que não
adianta “chegar lá” se o “lá” não é o seu lugar de pertencimento. Nessa cena,
Bárbara, na hora do café-da-manhã se oferece a fazer suco de lima da pérsia
para Jéssica que fica sentada na mesa da cozinha, enquanto Bárbara trabalha
diante do liquidificador. Os lugares foram efetivamente trocados. No entanto,
ao entregar o suco para Jéssica que, ato contínuo, bebe-o, esta não suporta o
seu gosto intragável (ou seja, ela não tem o gosto refinado). Jéssica capta a
mensagem e, logo, empurra o suco goela abaixo, pois se o lugar de beber suco de
lima da pérsia não é de seu pertencimento, ele o é de seu “merecimento”.
Quiçá pretendendo fazer a
metáfora da história social brasileira, Anna Muylaert não deixa escapar um aspecto tão caro das medidas de nossa veste social: a sexualidade. Em “Casa Grande
e Senzala”, o sociólogo pernambucano Gilbero Freyre, com maestria delineou como
os lugares ocupados na vida sexual do brasileiro refletiam as relações de
poder, opressão e afetuosidade. A complexidade do mosaico sexual brasileiro vai
além pois nele está acentuada a promiscuidade não apenas entre brancos, negros
e índios, mas a confusão entre afeto e subjugação. A negra é subjugada e
explorada pelo senhor branco, mas goza de chamegos com o seu “nhõ-nhõ”. No
filme, essa dinâmica é retratada pela relação entre a empregada Val e o menino
Fabinho, o filho da dona de casa que foi criado por ela, que teve ela como uma
“segunda mãe” que com ele passava o dia enquanto a mãe saía para trabalhar, é
dele, do menino Fabinho a pergunta que dá título ao filme, feita por ele a Val
em relação a sua mãe ausente: “que horas ela volta?”. Já adulto, fazendo
vestibular, o menino tem uma relação ambígua com a sua eterna babá, pois ainda
dorme com ela abraçado... A reprodução dessas relações de poder e afeto também
se instala entre a recém-chegada Jéssica e o dono da casa, José Carlos. Este se
sente inteiramente à vontade para seduzir a moça, filha da empregada, mesmo
sendo um homem artista e bon vivant,
ou seja, a princípio refugindo ao modelo coronelista tradicional, não estaria
integrado ao modelo machista do senhor de engenho, mas, como está! José Carlos
não trabalha, vive de renda e passa o dia em casa enquanto a mulher trabalha
fora. Ao final do filme, não tendo tido sucesso em sua empresa de sedução, pede
desculpas à mãe da menina, a empregada doméstica, já que ele tinha consciência
de que estava tirando partido de seu lugar de poder, e vai dormir (ele passa o
dia dormindo).
Ao final, Jéssica passa no
vestibular, conquistando uma das disputadíssimas vagas na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP, enquanto que Fabinho, o filho dos donos da casa que,
também, estava prestando vestibular para a USP, não passa... O passaporte para
a mobilidade social está ganho... Ato contínuo, Val pede demissão, aluga uma
casinha no subúrbio e com as suas economias investe em um negócio próprio. O
rapaz Fabinho embarca para uma temporada de “estudos” na Austrália.
A Dança das Cadeiras protagonizada pelo Feminino
É importante frisar que essa
confusão de lugares é protagonizada, principalmente, pelo feminino. Qual o
lugar do feminino pós-revolução feminista? O lugar de Val é o lugar de uma nova
profissional doméstica que tem, nos últimos tempos, conquistado direitos de
isonomia constitucional, ou continua a ser o lugar da “ama de leite”,
afetuosamente aconchegada nos braço de seu nhõ-nhõ? A incerteza quanto aos
lugares a serem ocupados pelo feminino permeia todas as classes sociais nas
últimas gerações, inclusive as classes de elite, pois Bárbara é uma nova mulher
da elite, não mais é uma dondoca que passa o dia em torno de boutiques e salões
de beleza, mas uma mulher que trabalha e passa o dia fora, sacrificando,
inclusive, as suas funções maternas delegadas à sua funcionária doméstica Val.
Esta última, por sua vez, delegou o exercício de sua maternidade a “Sandra”, a
moça com a qual deixou a sua filha Jéssica para que fosse por ela criada no
Nordeste, enquanto ela trabalhava no Sul maravilha e providenciava o seu
sustento. O lugar da mãe parece ser um lugar cuja conquista é relegada a uma
perpétua “terceirização”. Terceirização essa que não é rompida, sequer pela
“revolucionária” Jéssica que deixou seu filho bebê no Nordeste para vir estudar
em São Paulo e progredir na vida. Seria o jogo da maternidade um jogo eterno de
soma zero? No qual as mães estariam, para sustentarem as suas autonomias,
fadadas a não serem mães e os filhos a não serem filhos de sua próprias mães.
Esse lugar da mãe é reabilitado não por Jéssica, mas por Val que tem como
resposta da filha, ser por primeira vez, chamada por ela de “mãe”. É Val quem
rompe a cadeia do abandono materno, aquela que produz nos filhos a interminável
pergunta “que horas ela volta?”, ordenando que Jéssica traga o seu bebê Jorge
para ser criado junto a elas.
Ainda podemos dar conta desse otimismo?
O filme de Anna Muylaert foi
produzido quando ainda estávamos gozando dos frutos de programas sociais que,
de fato, tiraram o Brasil e os brasileiros dos rincões da miséria, que abrandaram a nossa fome, que incluíram as classes D e E em uma nova e promissora classe
média, a tão falada classe C. Programas sociais que tornaram uma grande parte de nós “consumidores”. Muito foi
conquistado, mas, muito tristemente, vemos hoje, os ganhos serem pouco a pouco,
quando não, abruptamente, perdidos. O retorno das migrações dos nordestinos que
deixam as suas recém-adquiridas motos de tanques vazios em frente às suas casa e tomam um ônibus rumo
a estados do Centro-Sul em busca de emprego é emblemático desse novíssimo
estado de coisas. Isso nos anuncia um eterno retorno ao engessamento, à
imobilidade, ao abandono. Não bastasse sermos filhos de uma pátria de pais
corruptos, o filme de Muylaert anuncia que apesar de sermos filhos do abandono materno, estaríamos sendo reencontrados por nós mesmos e redentoramente voltando ao
aconchego do lar. Infelizmente, nos dias que correm, para além do otimismo do
filme, voltamos a ocupar o lugar da derrelição.
Finalmente, “Que horas ela volta?”
Se o filme de Anna Muylaert se
propôs a calar essa pergunta ou torná-la obsoleta, nós brasileiros, continuamos
sem ter a resposta. Que horas voltam as mães, que hora voltam os filhos, que
horas voltam os pais, que horas volta a justiça social, que horas volta a honestidade, que horas volta
o compromisso, que horas volta a seriedade, que horas volta a solidariedade? É
possível ter de volta as coisas que, talvez, nunca tivemos? E ao (re)tê-las,
onde colocá-las, qual serão os seus lugares? Arriscaria responder que esse lugar a ser habitado
deve ser sempre o lugar da dignidade da pessoa humana. Lugar inamovível e que
deve estar sempre livre e desocupado para aqueles que queiram vir e com braços
abertos para receber os que queiram voltar, não importa a hora.