segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

 MERGULHAR EM TEU CORPO O MAIS PROFUNDO ATÉ TOCAR A TUA ALMA


A glória para o amante não é capturar o corpo de seu amado, mas desvendar-lhe a  alma. Aquele que ama acredita que, por amar, conhece o amado mais do que qualquer outra pessoa, mais do que ele mesmo e nesse conhecer dá a maior prova de seu amor:"Eu te conheço, sei quem você é". 


O amado, também amante, pode, com isso, se sentir menos sozinho, fusionado no amor, mas também, traído em seu segredo, pois foi conhecido sem ter se dado a conhecer. É disso que trata o mito de EROS e PSIQUÊ: Eros o deus do amor, se apaixonou por Psiquê uma bela mortal, mas para poder concretizar esse amor que era proibido por sua sua mãe Afrodite, Psiquê deveria acreditar que ele era um monstro, jamais podendo ver a sua face, amando-o no escuro.


Eram muito felizes até que Psiquê, por curiosidade, ao estar Eros adormecido, iluminou o seu rosto e conheceu de sua beleza. Eros se sentiu traído, ferido de morte em seu amor e se separaram. Mas tendo Psiquê se redimido, provado seu amor, foi resgatada por Eros que nunca deixara de amá-la e se eternizaram juntos:


Deixa que as luzes se apaguem para que eu te possa ver melhor/ E perscrutar os meandros de tua pele, traçados de curvas em eterno retorno ao nosso encontro/ Deixa que as luzes se apaguem para que eu te possa ver melhor/ Mergulhar-te em meus braços para te navegar nas águas da poesia: feita carne e sangue/ oceano e fantasia.


Andrea Campos


 ODIANDO-ME, MAIS EU FUJO (MICHELÂNGELO)

Soneto para Vittoria Colonna


Odiando-me, quanto mais eu fujo de mim, 

Minha Senhora, mais em sua direção eu sou empurrado;


Minha alma então, como deve,

Treme menos para mim lá, onde espera que eu fique.

O que os paraísos fornecem, eu oro

Para perceber na sua face,


E em teu lindo olhar, onde reside toda a redenção,

Pois bem eu sei, a cada dia

Comparando-o a outros, não há vestígios

Da tua virtude, a menos que o coração se mostre nos olhos.

Tão rara essa beleza!


Ver-te é meu único desejo, puro e completo.

E ainda que sejam esses vislumbres raros, 

São como o rio Lete para a alma.


Sempre teu, Michelângelo Buonarroti.


*

Ilustração:


Retrato de Vittoria Collona por Michelângelo Buonarroti.




 PARA VITTORIA COLONNA.

Michelângelo Buonarroti.


Em mim a morte, em ti a minha vida,

Tu extingues, dás, reparte o tempo

Como queres. Breves e longos são os dias meus.


Feliz estou de tua cortesia concedida,

Bendita a alma, onde não corre o tempo,

Por ti se pôs a contemplar a Deus.


*

Ilustração: "Marquesa de Pescara (Vittoria Colonna)" por Michelângelo Buonarroti.




domingo, 30 de janeiro de 2022

 "NÃO ESTOU NO LUGAR CERTO - EU NÃO SOU UM PINTOR!" 

(MICHELÂNGELO)


Já ganhei bócio com esta tortura,

curvado aqui como um gato na Lombardia

(ou em qualquer outro lugar onde há veneno na água estagnada).


Meu estômago está esmagado sob meu queixo, 

minha barba está apontando para o céu, 

meu cérebro está esmagado em um caixão,

meu peito torce como o de uma harpa. 

Minhas pinceladas,

acima de mim, o tempo todo, pingando tinta

então meu rosto dá um bom piso para excrementos!


Minhas ancas estão apertando minhas entranhas,

minha pobre bunda se esforça para funcionar como um contrapeso,

cada gesto que faço é cego e sem objetivo.

Minha pele fica solta abaixo de mim, 

minha espinha

toda amarrada de se dobrar sobre si mesma.

Estou tenso como um arco sírio.


Porque estou preso assim, meus pensamentos

são loucas e pérfidas tripas:

qualquer um atira feio através de uma zarabatana torta.


Minha pintura está morta.

Defenda isso para mim, Giovanni, proteja minha honra!

Não estou no lugar certo - Eu não sou um pintor!


(Carta-poema desesperada de Michelangelo Buonarroti para Giovanni de Pistoia quando o artista estava pintando a abóbada da Capela Sistina em1509).


*

Ilustração: a Punição de Aman - Detalhe da Capela Sistina (Michelângelo Buonarroti)


 O PECADO ORIGINAL: A INAUGURAÇÃO DA HUMANIDADE POSSIBILITADA PELA VONTADE DE SABER DO FEMININO.


No início era o paraíso representado pela abundância, pela não necessidade de esforço, pela ociosidade e pelo não saber. A letargia e a malemolência seriam eternas às custas do não conhecer. Adão acatou o estado de ignorância com louvor, mas não Eva. Para ela, todo sacrifício valeria a pena em nome do conhecer, toda dor, precariedade e provisoriedade do ser. Em sua vontade de saber, Eva acatou o desafio da vida e fez face à morte. Assim, a possibilidade humana para o conhecer foi fruto não apenas da mordida de um fruto da árvore proibida, mas do destemor e ousadia do querer saber feminino. 


O grande Michelângelo no teto da Capela Sistina enfatiza o projeto do saber humano não apenas protagonizado por uma única figura feminina, mas por duas: a serpente também é uma mulher. A sedução de uma e a curiosidade da outra. As subversões de ambas se tocam.


Uma vez expulsos do paraíso e condenados a inaugurar a humanidade com o trabalho, a dor e o esforço pelo conhecer, na representação de Michelângelo, Adão e Eva não cobrem as suas partes, não há folhas de figueiras nem o pudor das mãos sobre os seus sexos. Afinal, não havia do que sentirem vergonha. E isso, na leitura do Mestre, ao já ter provado do fruto proibido, Eva já sabia.




terça-feira, 25 de janeiro de 2022

La La Land

 


La La Land, filme maravilhoso. O que eu acho fantástico nos musicais é que assistimos a eles sem nos lembrarmos de que são musicais, como se no fundo, muito da nossa vida se traduzisse e fosse vivenciado em dança e música. É como se estivéssemos sempre nos expressando através de um baralho de linguagens. Quem nunca se pegou cantarolando uma canção que dizia respeito àquilo que se estava sentindo naquele momento? Ao estarmos alegres, mesmo sem par, a alegria nos tira pra dançar... Quem nunca dançou com o seu amor (sem música)? As canções e músicas conectam-se a nós automaticamente, inclusive quando não as estamos ouvindo, vibram e tocam em nossos pensamentos, reverberam em nossos sonhos... E quando postamos uma música nas redes sociais, é aleatório ou se trata da trilha sonora daquele nosso instante? Quanto ao roteiro, achei que, ao final, ele evoca "Casablanca" . Durante todo o filme, o diretor nos oferece sinais de que Casablanca chegará à narrativa: O papel de parede do quarto da protagonista é um grande retrato de Ingrid Bergman, há nas ruas da cidade um imenso cartaz no qual Ingrid Bergman cintila, em frente ao Café onde a mocinha trabalha está o balcão no qual foi filmada uma cena de amor entre Rick e Ilsa, ela mesma cita Casablanca em uma de suas falas. Mas como não esperamos "Casablanca" no filme, pensando que são apenas homenagens despropositadas, nos surpreendemos quando ela acontece. Com o coração apertado só nos resta balbuciar "We will  always have Los Angeles (LA Land)". Play it again, Sam!

domingo, 23 de janeiro de 2022

 Pois é, querida Tarsila, é assim que querem a tua cidade, não uma cidade de pessoas, mas de operários, não uma cidade de cidadãos, mas de operários, não uma cidade de artistas, mas de operários. Não uma cidade, mas um pátio de fábrica com seus muros exatos. Muros que começam e terminam monocordicamente cinzas. Nessa cidade o sol não percorre o tempo, mas sobre um céu também cinza, percorre os ponteiros de um relógio. Cidade onde não se ouve o grito, mas só o barulho do apito. Uma cidade sem cor, sem sangue e sem sal, dormindo e acordando pra sua vocação industrial. E eu nem preciso lhe dizer, você sabe o quanto eu sinto... Mas a tua cidade seguirá, dadivando a sua cal a quem quer lhe fazer bem e, inopinadamente, lhe faz mal...


*

Tela "Operários" de Tarsila do Amaral.




 Ciccillo Matarazzo foi um magnata ítalo-brasileiro. Grande colecionador de arte, foi um dos grandes apoiadores do paraibano Assis Chateaubriand na criação do MASP. A casa dos Matarazzo, cuja construção se iniciou em 1896 com o patriarca Francesco Matarazzo era uma das mais belas da Avenida Paulista. Enquanto isso, no mesmo período, em inícios do séc. XX, mais precisamente em 1913, Henry Frick era um magnata do aço americano. Foi um grande colecionador de arte, sendo a sua casa na 5a Avenida, uma das mais belas de Nova York. A casa de Mr. Frick, hoje alberga o The Frick Collection, um dos mais adoráveis museus  em Nova York. A bela casa dos Matarazzo foi derrubada e cedeu seu espaço a um estacionamento. Estão vendo que não é só uma questão do "capitalismo"? Tem a ver com a nossa mentalidade tacanha, mesmo.


*

Abaixo, a Mansão Matarazzo em São Paulo (antes de ser demolida e transformada em estacionamento) e a Mansão Frick, hoje o Museu The Frick Collection em Nova York.





 E JÁ ESTAVA LÁ NO ANTIGO TESTAMENTO: A PRESCRIÇÃO DA VACINA.


A tradição hebraica entrecruza-se com o paganismo da mitologia grega. Símbolos gregos são recorrentes nas narrativas dos livros que compõem a Bíblia. Se na Mitologia Grega existia Esculápio, aquele que promovia a cura com ervas e antídotos e cujo símbolo é o bastão e a serpente, na Bíblia existe a "serpente" de bronze que, também, simboliza o antídoto e a cura. 


Segundo o Antigo Testamento, em meio à PESTE causadora de grande mortandade, Deus ordenou a Moisés que erguesse uma "serpente" de bronze. Aquele que a olhasse sobreviveria ao ataque de mordidas de "serpentes". Moisés obedeceu ao seu Senhor. E foi assim que o "povo de Deus" aplacou a PESTE. Leiamos o que diz as Escrituras Sagradas:


"O Senhor disse a Moisés: "Faça uma serpente e coloque-a no alto de um poste; quem for mordido e olhar para ela viverá".


Moisés fez então uma serpente de bronze e a colocou num poste. Quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, permanecia vivo."


Não é forçar a licença poética interpretar que "as mordidas das serpentes" são  os ataques de venenos, de patógenos, de vírus e bactérias e a "serpente de bronze" é o seu antídoto, proveniente da própria serpente, mas tornada bronze (inativado).


Ou seja, há mais de 2000 anos, a vacina já estava na Bíblia. E prescrita por Deus.


"

Ilustração: Afresco de Michelângelo no teto da Capela Sistina: a Serpente de Bronze.


Michelângelo

 DEUS NA ARTE: FÉ E RAZÃO.


Michelângelo era um grande anatomista. Dissecou mais corpos do que muitos médicos de seu tempo. A arte renascentista brota quando a ciência está em seus albores, com as suas luzes penetrando as frestas do obscurantismo medieval. É esta arte, fundada em matemática, medicina, perspectiva, fé e ciência e fé na ciência que transborda na arte sacra renascentista.


Arte que mais de 500 anos após o seu desabrochar nos lembra que religião é força para a iluminação e não ausência de Razão.



sábado, 22 de janeiro de 2022

Kafka


DA DESOBEDIÊNCIA QUE NÃO É AQUELA CIVIL, MAS TAMPOUCO MENOS GENEROSA...


Estando Kafka à beira da morte, deu ordens ao seu melhor amigo, Max Brod, que queimasse toda a sua obra, uma vez que esbravejava Kafka "NADA DO QUE ESCREVI, PRESTA!". Podemos perceber que Brod o desobedeceu. Naturalmente...rs


(Na foto, Kafka e o seu melhor amigo, Max Brod)







 KAFKA NU!


A fim de desnudar-se diante de seu pai e arrefecer as suas angústias, frutos de uma complexa e tumultuada relação paterno-filial, Kafka, aos 36 anos, escreve-lhe à mão uma carta de cem páginas. A sua letra em carne viva de raivas, rivalidades, ressentimentos e porque não dizer, amor, escorre pulsantemente em fervor de sangue... Kafka nunca enviou essa carta ao seu pai... Ele não a leria...


Magna Opus!




terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Tempo e memória

 TECNOLOGIA, TEMPO e MEMÓRIA


Ferramentas do Facebook encarregadas em  ondear-nos lembranças à praia da memória e armazenar permanentemente atividades vivenciadas em nossa linha do tempo, oferece-nos uma possibilidade que na literatura estaria na órbita do realismo fantástico: A de intervirmos em fatos passados, alterando-os, acrescentando-os, subtraindo-os e neles modificando, inclusive, a nós mesmos.. Esse fenômeno nos atualiza acerca do que se iniciou desde os tempos remotos das cavernas: A tecnologia como repositório da memória. Os livros que são uma tecnologia, a arte, sempre tiveram o condão de cumprirem essa função. No entanto, aqui temos algo feito em um formato absolutamente novo e para os nossos ancestrais, inusitado: A possibilidade de interagirmos com memórias do cotidiano, elevando-as ao fantástico e desafiando os herméticos vagões do tempo, esses que levam os nomes de passado, presente e futuro. Dito de outro modo: a edição automática e instantânea das memórias no tempo.  Digitamos um ou mais algoritmos e, de repente, solapamos o que antes era da ordem do mistério e já havia se cristalizado como relicário exclusivo dos deuses.


Estava relendo Borges por esses dias e em um de seus "memoráveis" contos ele nos diz "Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar ese verbo sagrado...)"...


*

Tela: a Persistência da Memória de Salvador Dalí.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022


 DAS INVISIBILIDADES QUE AINDA NÃO PODEMOS ALCANÇAR...




BAL BLANC (1903) Joseph-Marius Avy Marseille, 

Petit Palais, Paris. 


Essa belíssima pintura, uma das de minha predileção, faz referência a um momento  alcunhado de "Bal Blanc" (Baile Branco)  que ocorria nos recintos domésticos das moças e nos quais era vedada a presença de espécimes do sexo masculino. Os "Bal Blancs" eram bailes preparatórios para o grande evento iniciático, verdadeiros ritos de passagem, das meninas-moça, geralmente das camadas mais abastadas, na vida social.

 Seria um evento  congênere do que ainda hoje chamamos de "Festa de Debutantes" e que tem por escopo geral apresentar a jovem de 15 anos de idade à sociedade. Mas a expectativa e o enlevo quase dramático das "fillettes" iam além, uma vez que a iniciação no mundo das "mulheres" não ocorreria em um baile feito só pra elas, mas em um baile aleatório, já de adultos, no qual ela iria se "imiscuir" (quem não se lembra da cena antológica do filme "Guerra e Paz" baseado no livro homônimo de Tolstoi no qual a então adolescente, Natasha, interpretada pela insuperável Audrey Hepburn, vai ao seu primeiro baile?). O momento é de muito encantamento, mas também de angústia e apreensão: "Estarei bonita?", "Serei aceita?", "Alguém me tirará pra dançar?". O baile tinha, claro, por escopo específico, introduzir a jeune fille no mercado matrimonial...  


Agora, a curiosidade que nos faz coçar as pontas das orelhas: Como os rapazes aprendiam a bailar? Aprendiam a bailar uns com os outros no recôndito de seus lares, assim como as moças? Aprendiam com as preceptoras? Por que essas cenas, uma vez, também ocorridas com aqueles que vestem azul, não eram retratadas na pintura e nem narradas na literatura? Seriam os rapazes bailarinos por natureza? Talvez haja mais invisibilidades do mundo dos homens na arte e na literatura do que possa sonhar a nossa  filosofia...

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Stanza della segnatura: Rafael














 STANZA DELLA SEGNATURA: RAFAEL DI SANZIO


Aos 25 anos de idade, o jovem Rafael, nascido em Urbino, foi contratado pelo Papa Júlio II, para pintar os afrescos de seus aposentos (stanzas), dentre eles, a sua sala de despachos (stanza della segnatura). As stanzas  ficam ao lado da Capela Sistina. Rafael e Michelângelo trabalharam ao mesmo tempo, parede a parede durante a consecução de suas obras-primas. São os afrescos da sala de despachos: A Escola de Atenas (A Filosofia), à sua frente, A Teologia, e a cada lado, O Parnaso (A Arte) e as Virtudes (A Justiça). No teto, uma síntese dos quatro afrescos. 


Apesar da animosidade e proverbial mal humor de Michelângelo, Rafael o homenageou, ao pintar o filósofo, Heráclito de Éfeso, na Escola de Atenas com as suas feições.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Versos

 VERSOS AO ACASO (ANDREA CAMPOS)


Há noites que a palavra não vem, são noites de lua nova e eu a chamo de nome-lua para que ela se inscreva em mim e ilumine a minha pele, mesmo que não esteja escrita junto às estrelas, lá fora...


Há dias que a palavra amanhece como um sol, vejo-a brilhar de minha janela "não há de ser nada, é só uma palavra!", penso. Mas o corpo sua, a pele freme, a alma queima e eu tenho que me levantar correndo pra fechar as cortinas...


São só palavras, são só palavras, são só palavras... Mas elas me enlaçam, me alteiam como um balão aceso em fogo a inflamar o rumo e a direção de minha alma e de meu corpo...


A palavra vem e respira em mim, onduleio sôfrega com seus ais e transpiro vírgulas,  interjeições... Fico tonta, vou me esquecendo dos sinais. Ela me detém e me despe de metáforas, travessões, metonímias, pontos finais. E assim nós nos amamos nesse amor de palavra intraduzível como um alfabeto de animais.


Peço à palavra que me dê a mão, que me olhe nos olhos, pronuncie meu nome, derrame em mim a sua voz. Mas ela só se desenha, se apaga, se reescreve, se arqueia e se deita silente em minha cama. E, assim, sou presa de seu corpo, rendida e enredada por todas as letras de seus dedos.


Esbarro em uma letra e me arranho. Seu fonema me corta o baixo-ventre e seu sentido me esmaga. Entre o eu e o não-eu a letra me tece por entre os fios do escuro. Galopo sobre o seu som e o seu trote faz esvoaçar seus sinais. A letra em mim goteja cintilâncias. Gotas de gozo faiscantes vão escorrendo sobre a pele dos sentidos. Encharcada, a letra ecoa sibilante o meu chover a cântaros. E faz sílaba penetrando outra letra, que faz palavra penetrando outra sílaba que faz frase penetrando outra palavra. A letra me escapa, mas tudo em mim são seus rastros. Aparece, reaparece, amanhece, entardece, anoitece e depois some. 

A letra me penetra, me satura e me escava e inaugura o teu nome.


Escorro pelas grades do dia.Transbordo o instante. Derramando-me, tudo em mim é desmaio.  Me estancas com as  mãos. E sou eu essa água que te molha a boca.


Em um cardápio de pintura escolho a textura da sua pele, o cheiro dos seus óleos, a lixa dos seus pêlos. Faço o amálgama de todas as cores e pinto seu corpo num espelho: azul ultramar, verde vessie, amarelo cádmio e cola, muita cola. Até que num átimo, a sua imagem foge do espelho, se faz carne, prende-me por trás, ata-me as mãos e faz de mim o seu pincel.


Viro para o lado e vejo o teu rosto. Essa tatuagem na pele de meu pensamento.


Mistérios na lassidão do dia,

teus dedos em pentagrama,

fogo-fátuo soletra e redime

o sinuoso em ângulo-reto

do teu corpo.


Sol, sol-stício, sol-idão, 

Sol-da de corpo, gozo são

Sol, sol-arium, in-sol-ação, 

Sol-ado de pele, injunção

Sól-ido, líquido, sol-ução:


Queimar corpo a corpo no verão!



Não gosto de ser olhada enquanto escrevo. Vigio do mundo a porta entreaberta. Qualquer aproximação me dá um prenúncio de espanto. Quando escrevo tenho o corpo nu entre as mãos e não quero ser pega no ato.


E quando o metafísico pulsa gravemente no físico? E quando o metafísico faz tremer, faz suar, arrepia e sente saudade? E quando o metafísico faz o físico alucinar o beijo na boca do físico ausente a-lu-ci-nan-te-men-te? 

Qual a resposta da filosofia? Os poetas parecem já tê-la dado: "Nunca te vi, sempre te amei". 


Trôpega é a noite e as suas nuvens de pedra. Corre  nas veias um silêncio vermelho espumando o vazio das horas. Réstias da vigília ziguezagueiam a treliça. O suor escorre sobre a face ambígua da lua e contar estrelas é enxugar a polução do céu. 


Hora, então, de caçar a melhor palavra. E a melhor palavra está abraçada ao teu nome. Adormecer. E beijar a boca do sonho.

Fotografia: Nathalie Roze.


Empinando o ventre ela cavalgava os seus dedos de fogo. E chafurdava em seu suor e em seu gosto. Até se olhar no espelho e descobrir uma epifania em seu rosto.


Que seja pra sempre o que não é pra sempre 

mas é sempre luz na margem escura. 

Mais do que achado, o amor pra sempre, 

que seja sempre amado em sua procura!

Tela de Claude Monet "Impressionism, Soleil levant".

Foi rifado o amor. Quem dá mais, quem dá mais? Cem! Duzentos! Duzentos e cinquenta! Quem dá mais, quem dá mais? Uma desilusão! Uma alegria! Um velocípede!  Uma hemoptise! Uma garrucha! Minha flatulência! O esquecimento! Quem dá mais, quem dá mais? Uma galinha! Toda a memória! Uma  vaca! Minha dor nas costas! Quem dá mais, quem dá mais? Um carro! Uma fazenda! Uma casa de campo! Minha cicatriz! Meu primeiro beijo! Quem dá mais, quem dá mais? O que tenho! O que não tenho! Quem dá mais, quem dá mais? Ao final do dia, sem conseguir ser rifado, o amor ficou sozinho, olhos baixos, num canto da sala. Não se sabe se porque pra aquele povo o amor muito valia, ou se de fato, pra eles,  o amor não valia nada.

"Autonomossexualistas, mixoscopófilos, ginecomastos, presbiófilos, zooerastas, sexoestéticos e mulheres disparêunicas". Esse excesso de categorização acaba por assassinar as sexualidades e as práticas amorosas. Não sei do que se trata nenhuma delas. Mas gosto de ficar lendo-as... Sou uma lexicoescopicafilíaca...


Escavo o mais profundo de tua alma até sorver teu hálito.  Esse indecifrável garimpo  teu. Que não o sei e  não o sabendo em tudo o reconheço: na brisa, na aurora, no cravo e na putrefação. Teu hálito é minha neblina, inominável vício vão. Sopra em mim teu hálito e se inaugura meu coração.


A saudade é azulviolácea. Deseja. É  nas tardes que a onda rosácea  pede velas ao cais. A nostalgia é branca, nívea  herbácea,  já desfolhada acácia, velas desiçadas e lácias que nada pedem mais.

Sob o teu olhar, sou ave de arribação, eu sou vertigem. Sou o delírio de um voo sem retorno. Sou o desassossego. Sou a pequena morte. A pena e a sorte. O re(pouso). E a paz.

Semear manhãs, fazendo a colheita das noites, sorver a memória, mastigando o tempo. Cerzir o gozo na intenção das lágrimas, delirar saudade na intenção da música. Raspar a dor e cozinhar desejo, transpirar a morte e engolir a vida. Gritar o amor e transpor  precipícios. Ser pouco e nada, reluzindo tudo. Eriçar tua pele até voar com o sonho. Ser só desejo e flamejar estrelas. Velar o adeus, ressuscitando o beijo. 


Boca a boca com o destino, dizer eu te amo e nos salvar do amor.



Dentre uma miríade de ofertas 

Receber teu corpo, vértice de 

Auroras,

Deitar tua sede sobre o meu

Seio

E aleitar o dia.

A tua voz. A tua voz atravessou o tempo e capotou na barra de meu vestido. E cada palavra tua era um retrato amarelado nas gavetas da cômoda do desejo. A tua respiração ofegante denunciava pouco a pouco o ritmo do que sentias e eu te resgatei de uma memória a mim desconhecida. A tua voz. A tua voz atravessou o tempo e beijou a minha voz. Encontro de línguas saciadas e desdormidas.  A tua voz atravessou o meu vestido e se calou no grito nu de nosso amor silenciado...

Amor entre poetas é o verso do reverso do verso. É soneto sem chave, despudorado, de corpo escancarado. É sextilha sem mantilha. Alexandrinos desatinos. É sexo sáfico. É pá-lavrar arrepio de letras na devassidão do lençol branco da página. Amor entre poetas é iluminescência, é grito surdo na insconsciência. É estar alado na pulsão e sucumbir a realidade à imaginação. Amor entre poetas é não conseguir se desvencilhar do vício de se embriagar de poesia, sonho e ar. Não é amor puro, mas de pura libidinagem, porque sempre se atraca e se devora na (lingua)gem.

Gosto. Gosto quando gritas. Quando gritas meu nome. Porque nesse instante eu sou a única água que te salva. Que te salva do precipício. E que te faz cair. Cair vertiginosamente. Sem complacência. No abismo meu.

Para o amor: Mais amor.

Que o amor é palavra

Que queima

E não se cumpre.

As palavras se roçam, tremem, se arrepiam e se molham. Fazem hiato entre os dedos, boca a boca, ditongos. Pontuam-se no colo com uma exclamação, pernas circunflexas. Cada palavra tem um suor e tem um cheiro. Um dia, vi tirar a roupa, a palavra "namorar". Ela jogou seu  "n" para o "ar", e pequena e nua, gemeu de amor...


A mãe se vestiu com a roupa da filha, sentiu seu cheiro e, lânguida, olhou-se no espelho, como se fosse ela. Do outro lado do oceano, a filha experimentava, como em todos os dias, o seu gozo solitário enquanto o seu telefone, para o seu amante, dava sinal de ocupado.


Só o que te peço é esse imenso nada, um nada em gotas escavando as minhas veias. Um nada em mim com seus pelos irascíveis. Um nada sobre o nada regurgitando em ti a minha palavra que queima. Só o que te peço é um nada pulsante e inteiro, que me penetra de esguelha. E te dou o meu beijo de sangue na tua língua vermelha.


Bebe esse leite que te enreda, quente, fluido, jorrado do amarelazul da tua mulher. É assim que eu me dou, é assim que eu estou: tua leiteira de Vermeer.



sábado, 8 de janeiro de 2022

John dos Passos


 JOHN DOS PASSOS in PARALELO 42 (DA TRILOGIA USA)


Os USA são a fatia de um continente. Os USA são um grupo de companhias holding, alguns aglomerados de sindicatos, um volume de leis encadernado em couro de bezerro, uma rede de rádio, uma cadeia de cinemas, uma coluna de cotações da bolsa apagada e escrita por um rapaz da Wester Union num quadro negro, uma biblioteca pública cheia de jornais velhos e livros de história com os cantos das páginas dobrados e protestos garatujados nas margens a lápis. Os USA são o maior vale fluvial do mundo, bordejado de montanhas e colinas. Os USA são um conjunto de funcionários falastrões com contas bancárias demais. Os USA são um bando de homens enterrados de uniforme no cemitério de Arlington. 


*

Ilustração: John dos Passos e Ernest Hemigway, antes dos confrontos ideológicos que abateram essa grande amizade. (John dos Passos não simpatizava com o Stalinismo)

Platão e os Persas

 


PLATÃO e os PERSAS.


Em muitos dos diálogos de Platão, Sócrates, para melhor defender os interesses dos atenienses, louva a cultura e a força de um de seus maiores inimigos: os persas. O elogio aos persas é contundente no diálogo "Alcibíades", uma vez que  Alcibíades, que se tornaria general,  tem por única preocupação preparar-se para governar aqueles que considera como sendo o povo superior: os seus concidadãos atenienses. Sócrates o faz ver que não respeitar a nobreza de um outro povo e de uma outra cultura, subestimando-o, mesmo quando for um povo inimigo, pode ser um passo para a autodestruição. Eis um trecho do Diálogo:


Sócrates: Não sabes que nosso estado, de tempos em tempos, guerreia contra os espartanos e contra o Grande Rei (Xerxes, o Rei dos Persas)?


Alcibíades; Dizes a verdade.


Sócrates: Assim, se planejas ser o chefe de nosso Estado, não seria correto pensar que não se trata tão apenas de pousar os olhos sobre Atenas, mas de conhecer Esparta e a Pérsia? 


Alcibíades: Isso soa como verdadeiro. Contudo, continuo achando que nem os generais espartanos nem o rei da Pérsia deveriam ser levados em maior consideração.


Sócrates: Então comparemos nossa situação com a deles e principiemos por apurar se os reis espartanos e persas são de ascendência inferior. Não sabemos que os primeiros são descendentes de Hércules e os segundos de Aquemenes, e que  a linhagem de Hércules e a de Aquemenes remontam a Perseu, filho de Zeus?


Alcibíades: Sim. E que a minha, Sócrates, remonta a Eurisaces e a de Eurisaces a Zeus!


Sócrates: Ou seja, eles e nós temos em Zeus a origem de nossas forças. Sendo que os Persas são em educação superiores a ti que tiveste como mestre um escravo medíocre que te foi dado por teu tutor, Péricles. Não poderás enfrentar os persas se não os enxergares em seu real tamanho e não tratares de te aprimorar.


*

Ilustração: Sócrates aconselhando Alcibíades.

A cela de Ezra Pound

 



E por falar em RESISTÊNCIA, a cela da morte na qual ficou enjaulado o considerado maior poeta americano, EZRA POUND.


Uma vez capturado na Itália por crime de  traição à pátria durante a Segunda Guerra Mundial, traição essa que consistia em versejar e esbravejar contra o American Way of Life  em um programa de rádio transmitido da Europa para o próprio Estados Unidos, Ezra Pound foi preso, ou para ser mais fiel aos fatos, enjaulado  no United States Army Disciplinary Training Center (USDTC), em Metato, ao norte da cidade de Pisa.


As condições dessas jaulas eram tão desumanas e degradantes que a imprensa americana as  apelidaram como sendo “o repositório dos sedimentos sujos de nossas tropas no teatro mediterrâneo”. Nelas eram encarcerados os militares americanos que haviam cometido gravíssimos crimes de guerra e que aguardavam julgamento da Corte Marcial ou transferência para um Tribunal dos EUA no qual a pena para a sua nefanda prática seria inevitavelmente a pena capital. Ou seja, o nosso poeta estava mesmo em meio aos seus iguais, sendo ele o único civil a soçobrar na jaula dantesca.


As altas e conscienciosas autoridades militares yankees ordenavam que o poeta deveria ficar “sob vigilância especial e permanente, para evitar a fuga ou o suicídio. Nenhum contato com a imprensa, nenhum tratamento privilegiado”. 


Essas jaulas eram verdadeiras "celas de morte", gaiolas revestidas de malhas de aço, abertas de modo a serem vistas por todos os lados. A cobertura, ao alto, era feita por uma lâmina de metal. O isolamento dos encarcerados era total, sendo os guardas proibidos de dirigir-lhes uma só palavra. Ainda assim, mesmo entrando em estado de decomposição a cada dia das três semanas que ali resistiu e sobreviveu, suportando o calor escaldante do dia e a poeira e o frio da noite,  Ezra Pound mantinha os seus olhos em direção às baixas colinas nas cercanias de Pisa cobertas por pinheirais onde tantas vezes desfrutara de passeios com amigos e familiares.


Mesmo sendo vedada a leitura que não fosse a Bíblia, Pound enjaulado em seu martírio, em meio a convulsões, tristeza e colapsos nervosos, continuou a escrever os seus poemas em folhas de papel higiênico, poemas esses que integrariam os "Cantos Pisanos". Eis uns de seus versos mais belos e emblemáticos:


"Quando a mente balança qual lâmina de grama


Uma pegada de formiga poderá salvá-lo"


E assim, versejando, Pound fincou a sua bandeira de resistência. Na gaiola da morte, plantou poesia e a partir dela,  manteve a liberdade de suas asas...


Andrea Campos


*

Ilustração: Celas (jaulas da morte) nas quais foi engaiolado Ezra Pound.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022









 Escorrem nas paisagens do tempo 

as memórias do afeto,


Afetos-retrato,

Alguns sombreados,

Outros coloridos,

Alguns assinados,

Outros esquecidos.


Muitos embaçados

Por afetos confundidos,

Mas todos atrelados

A momentos tão vividos.


E assim vai cavalgando a memória

Na garupa do tempo,

Esse cavalo alazão 

selvagem e voador,

A galvanizar carne macerada

pelo gozo e pela dor.

 

Mas, a memória também mente,

Reinventa e ludibria,

Porque em si é também desejo

Do que haver sido se queria.


Então, vou inventando afetos

E para cada afeto, 

Um novo retrato,


E sei que apenas no halo

De teu sorriso

Se abre a memória 

do que eu fui de fato.


Andrea Campos


*

Photo: Nathalie Roze.