terça-feira, 23 de março de 2021

 NOHAN, O ABRIGO DE GEORGE SAND.








Em uma propriedade campestre em Nohan, Amandine Aurore, a escritora francesa George Sand, que adotou por pseudônimo um nome masculino a fim de ser aceita no mundo literário, recebia amigos como Balzac, Flaubert, Alexandre Dumas Filho, Lizst e Victor Hugo. O pintor Delacroix desfrutava de um ateliê nos domínios da amiga nessa aprazível comuna ao largo de Paris.
Mas não só do burburinho dos amigos vivia George Sand. A escritora que em menina resistiu a sair da paz de um convento, uma vez que queria ser freira, teve amantes à mancheia: Musset, Prosper Mérimée e Frédéric Chopin foram alguns deles. Conta-se que as mais belas peças de Chopin, cerca de dois terços de sua obra, foram compostas durante o seu "séjour" por sete anos na casa da amada.
Dela, disse Dostoiévski: Está dentre os melhores dos novos autores.
A autobiografia de George Sand foi recentemente traduzida para o português e teve bela edição pela Unesp em 2017. A escritora libertária que em inícios do século XIX, fumava e se vestia de homem, convida-nos a enrubescer com os seus segredos.











sábado, 6 de março de 2021

 Do porquê MICHELÂNGELO somado a GILBERTO FREYRE tem por resultado ALEIJADINHO.

(O nosso maior escultor, filho de um Senhor português com a sua Escrava africana).
A vida não tem tradução. Para a vida não há sinônimos nem antônimos. Sequer a morte seria o seu contrário, não apenas metafísico como também físico. Para as práticas de amor como as de ódio, sempre haverá um resto sobrando ou um x faltante em torno de suas equações exatas. E quando se trata da vida humana e suas circunstâncias em um país de formação hipercomplexa como o Brasil, o que temos é um número pi lançado ao infinito.
Essa complexidade, esses paradoxos e esse sem fim na tradução dos afetos e dos regimes de opressão e de libertação no Brasil, pode ter por nome um homem-síntese, aquele que foi e é, até hoje, o nosso maior escultor: Antônio Francisco Lisboa, o Mestre Aleijadinho.
Aleijadinho nasceu no ano de 1730, para alguns biógrafos, 1738, nos arredores de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto em Minas Gerais. Os nomes adotados por esse logrador, de imediato, nos informa a sua vocação para a afluência. Aleijadinho nasceu em uma vila na qual escorria o ouro, uma vila portentosamente rica, cuja fortuna era alimentada por esse valioso metal de cor escurecida.
Mas não foi em berço de ouro que nosso maior escultor foi dado à luz do sol. Antônio Lisboa era filho de Manuel Francisco da Costa Lisboa, um renomado arquiteto português, chegado a essas terras em 1724. Também, carpinteiro e escultor, após dois anos nas Minas Gerais, casou-se com dona Antônia com a qual teve quatro filhos.
Em torno de seis anos após ter contraído núpcias, Manuel Francisco engravidou uma de suas escravas de nome Isabel. Desse congresso vingou Antônio Francisco, curiosamente batizado com o nome de sua esposa. Embora não reconhecendo legitimamente o filho, alforriou-o desde o batismo e o criou e o educou.
O menino Antônio recebeu formação esmerada, tendo estudado as primeiras letras, a música e o latim com os padres de Vila Rica. Cresceu na oficina de seu pai, com o qual aprendeu o ofício de escultor. Na carpintaria foi conduzido pelas lições de seu tio, irmão de seu pai, o entalhador, Antônio Francisco Pombal. Cresceu, fez-se homem e abriu a sua própria oficina, comprando, inclusive, escravos para nela trabalharem, tornando-se assim, ele próprio, um senhor de escravos. E não se diga que em um modelo abrandado de exercer o seu senhorio. De gênio irascível, fala altiva e voz eloquente, do alto de sua baixa estatura, não economizava no rigor dos castigos aplicados, caso os seus escravos-artífices não correspondessem ao que lhes era pedido e deles esperado.
Quando o seu pai veio a falecer em 1777, embora, Antônio não fosse um de seus herdeiros legítimos, já que filho bastardo, não era um homem sem fortuna. Com o seu trabalho reconhecido e disputado entre as irmandades franciscanas e carmelitas, já que a sua arte era substancialmente sacra, comandava uma grande oficina e valorizava cada martelada de sua faina. Do mesmo modo que Michelângelo, sabia impor-se e muito bem cobrar por suas obras-primas. Conta-se que chegou a pedir uma oitava de ouro diária por uma obra encomendada em Sabará.
Tendo tido um filho com uma escrava forra, reconheceu-o e batizou-o com o nome de seu pai. Tendo enfim o nome paterno tatuado em seu seu sangue.
Foi a esse mesmo tempo, no qual legitimava o seu filho, que lhe adveio uma doença tenebrosa. Contava o escultor com cerca de 40 anos de idade quando foi tomado por uma espécie de doença reumática, talvez decorrente de sífilis que lhe foi tomando todo o corpo e os membros, principalmente as mãos. Chegou a ter gangrenados todos os dedos dos pés, o que fez com que passasse a esculpir de joelhos. Uma vez que ia perdendo, também, os dedos das mãos, pedia para que os seus auxiliares amarrassem uma tira de couro em suas palmas, na qual acoplavam o martelo e o cinzel.
A perda dos membros conferiu-lhe a alcunha de Aleijadinho. e foi como aleijadinho, sem pés e mãos que ele teceu as suas maiores obras: O adro com os doze profetas no Santuário do Bom Jesus do Matosinhos em Congonhas, esculpidos em pedra sabão e os seis passos da Paixão de Cristo. Sendo, também, arquiteto (tal Michelângelo), projetou a Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto. Nela, também são de sua lavra, o altar-mor, o retábulo, o frontispício, a fonte e o retábulo da sacristia. Como uma espécie de Dorian Gray, quanto mais o seu semblante se tornava aterrador, mais belas nasciam as suas obras.
Esculpindo, talhando e desenhando sempre à mercê das fortes dores que o atacavam, o seu humor colérico e desespero, por vezes o levaram a amputar os seus dedos, ele próprio, utilizando-se do formol com o qual trabalhava. Dizem que ficou tão desfigurado ao ponto de evitar mostrar-se a fim de não causar horror a quem o visse em sua imagem medonha.
Inspirada no escultor e em suas belas obras, versejou a iluminada poeta Cecília Meireles em seu Romanceiros da Inconfidência:
“ […] Cavalhadas, Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando em pedra. [...]”
Aos 84 anos, cego, deformado, o nosso maior escultor, fruto das aleivosias e afetos entre senhores e escravas, engendrado em nossa história que "se equilibra por sobre antagonismos", deixou esse mundo.
Sepultado na Igreja Matriz da Nossa Senhora da Conceição em Ouro Preto, em uma sepultura contígua ao altar da Senhora da Boa Morte, de cuja irmandade foi juiz, Aleijadinho, a partir de seu corpo massacrado, seguiu a perpetuar o paradoxo que lhe deu origem.
De joelhos, como quem reza, ergueu a sua obra com a altivez e a potência da beleza eterna.