domingo, 29 de março de 2020


"NÃO FOI DE CORONAVÍRUS QUE A VÍTIMA MORREU, ELA JÁ SOFRIA DE DOENÇA PREEXISTENTE"…

São muitas as narrativas que tentam minimizar o poder assassino do vírus coroado e desconsiderá-lo como a causa mortis de milhares de óbitos. Sinto dizer, mas o que está matando não são as chamadas comorbidades, mas o coronavírus, mesmo... Comorbidades todos nós temos, não há quem tenha uma saúde perfeita. No mínimo, temos um furúnculo, um cisto, uma enxaqueca...

Exemplifico o meu argumento com o caso de nosso imenso poeta, Manuel Bandeira.

Bandeira foi acometido pela tuberculose aos 18 anos de idade. A partir de então, toda a sua vida se deu à sombra da "Dama Branca", aquela que estava sempre à espreita, rondando os seus pulmões, ameaçando sorver o seu ar vital. Em razão da grave doença pulmonar, Bandeira viveu boa parte da sua vida em cidades serranas, banhadas pelo ar puro das estações climáticas que lhe expandisse a respiração. O poeta, na escassez do ar que lhe faltava, esperava deixar a vida precocemente... Viveu "como quem morre"...

Mas, Bandeira, contra todos os prognósticos, teve vida longa. E produziu uma obra poética de tempo mais extenso ainda. Faleceu aos 82 anos de idade. E não em razão da tuberculose, e não em razão de qualquer outra doença respiratória. Manuel Bandeira partiu desse mundo em razão de uma hemorragia gástrica.

De que teria Manuel Bandeira morrido, caso em seu tempo o poeta houvesse sido contaminado pelo devastador coronavírus?




PNEUMOTÓRAX (MANUEL BANDEIRA)
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.
……………………………………………………………………….
O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.





sábado, 21 de março de 2020


O VÍRUS COROADO


As fagulhas dos fogos de artifício do Réveillon de 2020 ainda crepitavam quando o Presidente dos EUA anunciou, gloriosamente, da altura de seu faustuoso poder, haver "eliminado" o chefe militar do Irã. Este assassinato colocou o mundo em estado de alerta e a iminência de uma terceira guerra mundial assomou-se como uma ameaça assombrosa e real. A justificativa para esta "eliminação" seria não uma nova Guerra, mas uma ação inadiável rumo a um processo de construção da paz. Ao celebrar-se a morte de um ser humano, estava-se, novamente, experimentando do gozo voraz de destruição de seres humanos, cuspindo arrogância e nutrindo-se os bilhões lucrados pela indústria da mortandade. O Irã anunciou que se vingaria e mais teria feito se maior fosse, também, o seu poder de destruição. Foi quando, nas vésperas do que seria uma nova gloriosa guerra, a China anunciou a circulação de um novo vírus. Um vírus letal e de alta transmissibilidade. Esse sim, glorioso em sua vocação de paralisar a segunda maior economia do mundo e países ricos da Europa, de causar um trilhão de dólares em perdas para a economia mundial e o principal: glorioso em sua sanha de destruir, de ceifar vidas, milhares de vidas. Para que guerras se temos o vírus?
Na China, são mais de 3.000 mortos, na Itália, país acuado na imperiosa rendição perpetrada pelo vírus, já se somam mais de 4.000 mortos, no combalido Irã, mais de 1.400 mortos. Computando-se, até o momento, mais de 11.000 mortos em todo o mundo. No indefectível país do Tio Sam, no país daquele Presidente que alvoreceu o ano, praticando os prazeres da guerra, centenas de vidas já foram capituladas. As suas ilhas da fantasia como Broadway e Disneilândia, tiveram os seus portões fechados e apagaram as suas luzes.
O "guerreiro" vírus não escolhe o seu alvo por raça, cor, bandeira, etnia, partido político, religião ou preferência sexual. Alastrou-se na França em razão de um culto com milhares de evangélicos, assim como cancelou o ramadã e a peregrinação de milhares de muçulmanos a Meca no Irã. De sua altura microscópica, o vírus revela o nosso real tamanho: o de insignificantes. E junto à nossa insignificância, a inutilidade de tantas outras insignificâncias nossas.
Estamos vivendo um momento de polarização, de disputas pela hegemonia de ideias, temperadas por um ódio insano e paroxístico, potencializado pelo avanço cibernético como jamais experimentado na história da humanidade. A sanha de nos destruirmos uns aos outros moralmente e diuturnamente, a prática de assassinatos virtuais, nunca esteve tão em voga. Mas, agora, há o vírus, que nos mata democraticamente, não importa a "razão" de nosso lado.
Dizem que é originado de morcegos, poderia ter sido originado de ratos como n'A Peste de Camus. Muitos alegam que o vírus é fruto de uma conspiração. Teses conspiratórias que tão somente endossam o nosso afã de nos colocarmos sempre em um lugar de controle sobre o que nos acontece. Afinal, o vírus é um predador, mas, pelas teses conspiratórias, fomos nós, seres humanos, os deuses que o criaram. E se nas guerras, morrem os soldados, mas não os generais, do vírus, não há quem escape. Do atleta que se arvora inquebrantável do alto de sua saúde ilusoriamente invencível, ao Presidente da nação mais poderosa do mundo que, a princípio, se negou a fazer um teste para a confirmação de ter sido ou não contaminado pelo vírus, uma vez que fazer o teste já seria fornecer atestado de vulnerabilidade. Estando a sua política pública de saúde, vulnerabilizada, sob a pressão da imprensa, não houve outro caminho que não fosse se submeter ao teste e tentar tomar as rédeas do que pode vir a ser uma hecatombe em seu país.
Não adianta nos enganarmos, somos todos precários, vulneráveis, vencíveis, matáveis. Carnes perecíveis, enfim. O vírus nos grita, eloquentemente, essa nossa face no espelho. Mas, ele, também, nos desafia. Nos desafia a debelarmos as nossas diferenças e a nos unirmos nessa missão de destruí-lo. Nos desafia a revermos as nossas inúteis práticas de ódio e a pormos em ação, práticas de respeito e de solidariedade.
O vírus nos revela, sim, a nossa pequenez, menor que seu tamanho infinitesimal. Mas, também, nos conclama a nos revelarmos uns aos outros de um tamanho outro.
Para ser vencido, não bastam os milhões da ciência. Bilhões serão insuficientes para aniquilá-lo se sobre o vírus não nos agigantarmos. Se não nos agigantarmos não apenas sobre a nossa incontornável perecibilidade, mas, sobretudo, em nossa potência de nos reinventarmos em humanidade e em generosidade.








quinta-feira, 12 de março de 2020



A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA E A CAPACIDADE BRASILEIRA DE TRANSFORMAÇÃO.
(Ou sobre a ideologia da inutilidade das sublevações no Brasil)



A data Magna que passou a ser comemorada a cada dia 06 de março no Estado de Pernambuco em razão da Revolução Pernambucana nos leva a muito refletirmos sobre nós mesmos, pernambucanos, e sobre todo o povo brasileiro em sua capacidade de levar a cabo ações e práticas transmutadoras.
Primeiro, ao questionarmos a invisibilidade histórica dessa revolução de modo a incutir no povo brasileiro um sentimento eterno de constitutivos derrotismo e incompetência revolucionária. Como se em nós houvesse, intrinsecamente, uma incapacidade para a promoção de mudanças efetivas. Os livros de história se esforçaram para nos convencer desse espírito nacional de não vocacionados para as transformações estruturais e mudanças de status quo há séculos. Entendamos.
O movimento brasileiro que consta como sendo a mais significativa revolução iluminista e libertária em nossos livros de história, sendo inclusive razão de um feriado nacional, é a Inconfidência Mineira. Com todo o respeito a esse movimento e aos inconfidentes, o que ocorre é que a Inconfidência Mineira sequer foi uma revolução ou um movimento efetivo. Foi, ao invés, tão somente, uma ideia, um plano que não foi concretizado. Tendo sido os seus mártires, condenados à morte, não por terem realizado a revolução, mas, estritamente, por seus atos preparatórios. O mais homenageado deles, Tiradentes, não tem, sequer, existência certa. Ou seja, no dia 21 de abril comemoramos uma Revolução ABORTADA, sequer não vitoriosa, já que apenas uma TENTATIVA de Revolução!.
O que me indago é se o propósito dessa data é comemorar a "Inconfidência", o projeto de revolução, ou o seu abortamento. Como se fosse uma data feita para nos lembrarmos de nossa incapacidade de implementar projetos de mudança e que, ao tentamos assim fazê-lo, teremos sempre a nossa morte anunciada ainda no período gestacional. Logo, a invisibilidade da Revolução Pernambucana frente à Inconfidência Mineira não se trata, tão somente, de fazer prevalecer os fatos históricos-políticos ocorridos nas regiões Centro-Sul sobre os fatos históricos-políticos ocorridos nas regiões Norte-Nordeste. Trata-se de uma evidente mensagem de DESENCORAJAMENTO transmitida pelas instâncias máximas de poder político a TODO o povo brasileiro. Uma ideologia centenária sobre a inutilidade de nossas sublevações e tentativas de mudanças estruturais. Ainda mais em se tratando de movimentos separatistas. Afinal, no dia 21 de abril comemoramos a nossa derrota o que seria o oposto se a Revolução libertária que comemorássemos anualmente fosse, ao menos, também, a Revolução Pernambucana!
Sim, porque a Revolução Pernambucana foi VITORIOSA! Foi um movimento ILUMINISTA e LIBERAL, um braço da então recente REVOLUÇÃO FRANCESA, eclodindo na América do Sul e capitaneada por brasileiros, homens da terra. Em 1817, derrotamos o PODER CENTRAL, colocamos abaixo a MONARQUIA e proclamamos uma REPÚBLICA! É, originariamente, não do Estado de Pernambuco, mas da República de Pernambuco, a nossa bandeira! Tivemos representação diplomática no exterior. No caso, o Embaixador Cruz Cabugá nos Estados Unidos da América. Durante mais de dois meses fomos uma República independente e vencedora. Mas esse fato histórico deve ser silenciado, afinal, não diz respeito a comemorarmos a nossa derrota e o nosso destino incontornável de derrotados em nossos projetos de mudança. Diz respeito a comemorarmos a nossa VITÓRIA e a nossa potência transformadora, proclamada não por um português como ocorre na celebração da independência do país, mas, independência proclamada pelo povo brasileiro!
A Revolução Pernambucana não era comemorada em nosso próprio Estado. Passou a ser celebrada, recentemente, a partir de 2008 e só no ano de 2017 tornou-se dia feriado. Trata-se de Revolução ainda desconhecida pela maioria esmagadora de nossa população. A hipótese que ora advogo é a de que o seu total desconhecimento em âmbito local e nacional tem o condão proposital de perpetuar o sentimento de eterna pequenez e insignificância do povo brasileiro. O sentimento de inutilidade de nossas práticas de mudança. Mais ainda no que diz respeito às mudanças na estrutura do poder. Acostumamo-nos a sermos elefantes gigantes que desconhecem totalmente o próprio peso e vivem como se tivessem o peso de uma minhoca! A nossa cidade do Recife, cidade de raiz mercantil, libertária, vocacionada para a circulação de riquezas com maravilhosos portos, seria para ser, no mínimo, algo próximo à cidade de Roterdã! Assim como cada cidade brasileira e respectivas vocações! Vivem todas muito aquém do que realmente poderiam ser!
Mas, sigamos, é hora de revermos a nossa história e os seus discursos inferiorizadores; incapacitantes, despotencializadores, perversos e traumáticos.
Vamos pôr abaixo, um a um, os nossos complexos, inclusive aquele que nos coloca em total dependência e subalternização ao pai-Estado e que nos leva à eterna nostalgia de um Rei.
Sejamos o que realmente somos! Transformadores, potentes, capazes e RICOS!
O brasileiro, junto a sua história tem sido morto a cada dia. Mas, já está mais do que na hora de proclamarmos a nossa potência transformadora, a nossa força vital, que assim como o Estado de Pernambuco é IMORTAL.

domingo, 8 de março de 2020

Sempre que me perguntam: "POR QUE AVANÇA TÃO ASSOMBROSAMENTE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL E NO MUNDO?", a minha resposta é sempre curta e rápida: "PORQUE ESTAMOS ALCANÇANDO O PODER".






Há muito, ainda, por óbvio, a conquistar, os desafios e obstáculos são inumeráveis mas não suficientes para nos deter.
Trago aqui apenas alguns números que são sobremaneira significativos e revelam que estamos escalando o poder econômico, político e social com a força de um tsunami:
As mulheres são maioria no ensino médio em 73% dos municípios brasileiros, sendo a maioria dos estudantes em todas as capitais do país;
As mulheres progridem mais do que os homens na educação, sendo delas o maior número de concluintes em todos os seus graus;
Nos cursos de nível superior, o número de mulheres representa 62,9% do total de concluintes de todo o Brasil;
Pesquisa feita pela Faculdade de Medicina da USP aponta que o número de mulheres que entram nos cursos de medicina em todo o país é superior ao número de homens desde 2009, sendo que as médicas são a maioria dentre os profissionais com idade inferior a 29 anos;
Na faixa que vai até os 25 anos de idade, as mulheres representam a maioria (64%) dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB);
As mulheres também são a maioria dentre aqueles que exercem a arquitetura no Brasil (63, 10%), sendo que em apenas dois estados brasileiros, a maioria é de arquitetos;
O número de mulheres brasileiras que concluem os seus cursos de doutorado no exterior já ultrapassou o número de homens;
Atualmente, as mulheres ocupam 69% dos cargos de Liderança em Comunicação no Brasil;
Na política ainda há muito a conquistar. Em sendo o centro nevrálgico do poder, de onde partem as leis que promovem a igualdade, a luta é desafiadora e renhida. Mas as experiências além de nossas fronteiras nos mostram, sim, que os obstáculos poderão vir a ser debelados. Em países como Ruanda e Andorra, as mulheres já são a maioria no parlamento. Ainda nessa esfera da vida pública, um estudo publicado pelo Journal of Economic Behavior & Organization apontou que a corrupção é menor nos países nos quais as mulheres têm maior participação no governo. Vamos então, firmes, devagar e sempre, firmes, devagar e sempre...
Se as mulheres são maioria esmagadora em profissões relacionadas às áreas das ciências humanas, mesmo, nas ciências ditas "duras", aquelas matematizadas, o número de mulheres exercendo profissões como a de engenheira, disparou no país. Números do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), revelam que a participação das mulheres nas áreas de exatas recrudesceu, aceleradamente, de 2011 até 2016. Os dados do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) confirmam que o número de mulheres engenheiras registradas, por ano, no sistema passou de 13.772, em 2016, para 19.585, em 2018, um crescimento de nada menos do que 42%! Ainda, de acordo com o Confea, o número total de engenheiras ativas no Brasil, hoje, é de 196.372. Se, antes, as mulheres apareciam timidamente nas salas de aula voltadas às tecnologias, hoje, as suas presenças pululam e a cada dia é mais expressiva a ocupação de mulheres em cargos de liderança no setor.
Last but not least, mesmo nessa sanha de alguns por sermos exterminadas, existimos em maioria no país. No Brasil as mulheres são 51,7% da população, 52% do eleitorado e enquanto, hoje, a expectativa de vida dos homens é de 73 anos de idade, a das mulheres é de 80 anos.
Ou seja, a violência contra a mulher é proporcional ao incremento de nossas conquistas e é uma reação à desconstrução que temos feito aguerridamente nos núcleos de sustentação do patriarcado.
Mas sinto dizer: Não vai adiantar. Podem aqueles que não suportam dividir conosco o estatuto da igualdade e da solidariedade, continuarem como bestas-feras desatinadas, descompensadas e histéricas no desespero dos que temem conosco compartilhar o poder.
Podem continuar a xingar-nos,a detratar-nos, a nos vir com palavreados chauvinistas e risinhos nervosos, a apontar-nos facas, a nos mirar com revólveres, a lançar-nos paus e pedras, a estuprar-nos, a denegrir-nos, a difamar-nos e a injuriar-nos. A nossa gana é irrefreável e, juntas, nos multiplicamos e representamos umas as outras.
Podem continuar. É inútil. Digerimos o fel inoculado pela violência transformando-o em sangue que borbulha em vitalidade e força.
Sinto muito, estamos, sim, alcançando o PODER. E preparem-se: Isso é só o começo.

sexta-feira, 6 de março de 2020


BRUXAS NO BRASIL





Em meio a uma história milenar na qual a violência contra a mulher é um dado constante e assombroso, é um refrigério termos acesso a narrativas que nos falam daquelas mulheres subversivas e transgressoras, dentre as quais as bruxas.

E não me refiro às bruxas idealizadas pela mitologia, mas às bruxas cujas práticas sempre desafiaram o status quo, a marginalização, as religiões e as ciências. Essas mulheres, por terem investido em forças e lógicas outras para a existência, foram cruelmente perseguidas a fim de serem exterminadas. Representavam um modo feminino de viver e de pensar que ameaçava a estrutura patriarcal do saber temporal e do saber espiritual. Estima-se que entre os séculos XV e XVIII, cerca de 100.000 mulheres foram executadas em fogueiras pela prática de bruxaria.

E essas sempre tiveram presença constante na história de formação do Brasil. Se formos falar das bruxas índias nativas, teremos material para um tratado. Mas, restringirei os meus exemplos ao nosso processo colonizatório inaugurado pelos europeus.

Falo das três feiticeiras que viviam na cidade de Salvador corria a década de 1590, antes dessa cidade receber a visita da Santa Inquisição como nos informa o historiador Emanuel Araújo.

Chamavam-se elas: Isabel Rodrigues, de alcunha "Boca Torta", degredada de Portugal para o Brasil em razão de suas práticas feiticeiras, Antônia Fernandes que dizia ter aprendido com o diabo que beber semente de homem fazia querer grande bem e Maria Gonçalves Cajado, de alcunha "Arde-lhe o Rabo". Essa última dizia:

"À meia-noite no meu quintal com a cabeça ao ar, com a porta aberta para o mar, eu enterro e desenterro umas botijas, e estou nua da cintura para cima e com os cabelos soltos, e falo com os diabos, e os chamo e estou com eles em muito perigo".

Chegamos até aqui, porque sempre, de algum modo, praticamos a transgressão, o enfrentamento e a resistência.

E porque sempre, sempre, desafiamos fogueiras com a força de nossa magia.





quarta-feira, 4 de março de 2020


O CASO GUGU-ROSE MIRIAM OU O "OCASO DA IMPORTÂNCIA DA MATERNIDADE NA CONTEMPORANEIDADE".


Com alguma perplexidade e muitas interrogações, tenho acompanhado o caso "Gugu-Rose Miriam", não porque me interesse pela vida de nenhum deles, uma vez que sobre eles sempre tive total desconhecimento, mas porque visualizo, nesse caso, um fato emblemático a sinalizar para o atual lugar da mulher na família e para a importância da maternidade na contemporaneidade. Gugu e Miriam tiveram vida em comum durante 20 anos. União duradoura, pública e estável da qual frutificaram três filhos. Declaravam-se ser uma família e como uma família eram alardeados pelos meios de comunicação. Ocorre que Augusto Liberato veio a falecer precocemente, aos 62 anos, morte essa que se deu fatidicamente sob os olhos da companheira Rose, em sua casa em Orlando, EUA. Uma vez lido o testamento de Gugu, verificou-se que Rose Miriam não havia sido por ele contemplada, tendo sido preterida pelos sobrinhos do apresentador.

Quanto à herança, Rose sequer seria uma herdeira de Gugu, uma vez que a esta tem sido negada o status de companheira em uma União Estável. E o que se entende por União Estável? O art. 1.723 do Código Civil Brasileiro, assim a define: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

A grande celeuma, atualmente, residiria no questionamento de que Gugu e Rose não teriam intenção de formar família. De que ela teria sido contratada "apenas" para gerar seus filhos, educá-los, acompanhá-los em viagens e dedicar a sua vida, com exclusividade, ao Gugu, tendo abandonado o exercício da profissão de médica a fim de bem cumprir esse mister. O que ocorre é que na acepção de família para aqueles que negam à união de Gugu e Rose o status de União Estável, deve constar inextricavelmente a prática de relações sexuais, o vínculo erótico, aduzindo-se estar o mesmo ausente dessa controversa relação. Ou seja, há comunhão de vidas há duas décadas, há geração de filhos, há dedicação exclusiva, mas não há família, por não haver sexo marital. E por não haver sexo marital, vida erótica entre o casal, não tem Rose direito algum a ser herdeira. Isso me faz pensar na história das famílias e constato que durante milênios, o vínculo erótico-afetivo entre as partes de um casal foi de uma ausência eloquente, inclusive seria um mal familiar indesejado.

Na família grega, por exemplo, caberia à esposa a honrada função de reprodutora e educadora da prole, assim como de administradora privilegiada do lar. Famosa é aquela acepção de Aristóteles para o qual a mulher seria apenas um compartimento no qual o homem colocaria a sua semente a fim de germinarem seus filhos. A vida erótica e afetiva dos homens, o "eros" era encontrado fora do casamento, fosse nas relações com rapazes, fosse ao frequentar as cortesãs. As esposas que se mostrassem vocacionadas para uma vida erótica, poderiam ser repudiadas. As paixões, as práticas eróticas eram, no mais das vezes, adulterinas. São alardeados os lençóis perfurados utilizados durante a Idade Média até o século XIX, nos leitos conjugais, para que o casal não tivesse encontro de peles, mas, tão somente houvesse a penetração intra-vagínica.

No entanto, a ausência de erotismo e paixão não era um capitis deminutio, uma diminuição para a mulher, muito pelo contrário, a ela caberiam todos os direitos, uma vez que era a alta responsável pela geração e criação dos novos cidadãos e soldados para a pólis. Nas sociedades agrárias e mesmo nas posteriores sociedades urbanas, a maternidade continuaria a desfrutar de um lugar privilegiado, pois era através dela que seria gerada mão-de-obra, quer fosse para as atividades rurais, quer fosse para os postos de trabalho no comércio e na indústria. Jamais seria questionado o lugar de uma mulher na família e na união com um homem pelo fato de ela "apenas" gerar e educar os seus filhos e com ele conviver com dedicação exclusiva, mas com ele não ter uma vida erótica. Esse questionamento na atualidade nos leva a verificar um claro desvalor pelo qual passa a maternidade na contemporaneidade. Não a maternidade e a vida em comum, mas a vida erótica, essa sim é que é um fator determinante para que ali esteja uma família e ali se considere um casal. As razões desse fenômeno de desvalorização da maternidade podem ser facilmente observados para os que o quiserem ver. O incremento populacional e a crise alimentar, o esgotamento das agendas estatais para atender a demandas como creches, saúde e educação, os custos da gravidez de uma empregada para as empresas privadas, a diminuição da produtividade profissional de uma mulher e a queda de sua contribuição para a economia em decorrência de uma gravidez demonstram os impactos atuais da maternidade para o mundo da economia e do trabalho, assim como para a gestão dos recursos públicos.

Se antes, ser mãe era contribuir para a produção de riquezas, hoje, ser mãe pode representar um peso social e um entrave a ser suportado por toda a sociedade. Isso poderá mudar com a crise previdenciária, mas, por enquanto, a maternidade tem experimentado a sua valorização em queda abismal. Não se cobra, hoje, de uma mulher, ser mãe, mas sim, ter uma carreira, uma vida profissional, um bom poder aquisitivo, consumir e pagar em dia os seus impostos e as suas contas. Ser útil à sociedade através de sua atividade profissional. E isso, a nossa Rose não o fez. Pelo contrário. Abandonou a sua carreira e passou a ser absolutamente dependente financeiramente de um homem a fim de dar-lhe filhos e criá-los. E se com ele não tinha vida sexual, sequer pode ser considerada a sua companheira. O que antes glorificava uma mulher, o exercício da maternidade, hoje é apenas um detalhe, insuficiente, inclusive, para a constituição de uma família.

No entanto, a despeito da validade dessa análise da desvalorização da maternidade na contemporaneidade e da, correspondente valorização da produtividade profissional da mulher, assim como a insuspeitada atual supremacia da vida erótica sobre a maternidade como fonte de determinação de existência de vida conjugal, penso que, no caso Gugu-Rose, um valor maior se alevanta. Um valor representado pelos 800 milhões de reais a serem partilhados em sua herança. Não importa o quanto ela tenha contribuído para o equilíbrio e bem-estar de Gugu a fim de aquinhoar essas milhares de moedas. Nunca terá sido o bastante. Apenas a maternidade não alcança a importância desse valor.

Tivesse Gugu tão somente uma casa modesta de praia e um apartamento de três quartos em um bairro de classe média, opino que essa discussão sequer existiria. Rose Miriam já teria sido há muito reconhecida como sua companheira, a União Estável seria incontroversa de direito e de fato e eu não teria feito quaisquer reflexões sobre esse assunto e nem escavado a minha memória até Aristóteles e quebrado a minha cabeça com as políticas populacionais chinesas.

Mas, o que estão em jogo são 800 milhões de reais. E diante de 800 milhões de reais, não há quem de uma mulher se compadeça e nem maternidade que resista.

terça-feira, 3 de março de 2020

PATRIARCADO E A MULHER TRABALHADORA.







Qual o impacto do modelo patriarcal para o mundo da mulher trabalhadora? Assim como pontua-se a possibilidade de emancipação e exercício de poder pelas mulheres nos regimes monárquicos, igualitariamente aos homens, herdeiros da coroa ( e não que isso decomponha o modelo patriarcal, mas, certamente, presta uma certa feição matriarcal ao regime) mutatis mutandis, ou seja, por fatores outros, esse modelo claudica ao se tratar das mulheres pobres das classes trabalhadoras. Uma das razões reside no fato de que os homens dessas classes, geralmente, fracassam em se adequar ao modelo do homem do patriarcado: Mantenedor, provedor, detentor de propriedade privada e, portanto, controlador da mulher que dele depende materialmente e a ele se submete e subalterniza (ou seja, a escolha entre ser assujeitada pela dependência econômica e ser autônoma ao envidar por si mesma a luta pela vida sempre foi uma possibilidade maior para as mulheres das classes inferiores). Logo, por estarem de igual pra igual com os homens na luta pela sobrevivência, não poucas vezes com melhores ganhos e até sustentando-os, a mulher trabalhadora historicamente enfrentou as mazelas do patriarcado de forma mais altiva e desafiadora do que as mulheres das classes intermédias e superiores. Infelizmente, não sem experimentarem os efeitos perversos desse exercício de força, cujo principal sempre foi a violência de seus companheiros, pela frustração de não conseguirem acumular capital e ocuparem o lugar do masculino no patriarcado. Ou seja, subalternizada ou emancipada, dentro ou fora do patriarcado, mas tendo-o por referência, a violência contra a mulher é democrática, atingindo, historicamente, a todas. Um dado é que, ao analisarmos processos judiciais, vemos que as mulheres trabalhadoras apanham dos companheiros, mas também batem muito. São mortas por eles, mas também os matam. Ou seja, em uma cultura de violência, ao estarem em paridade de condições econômicas com os homens na luta pela sobrevivência, as mulheres trabalhadoras das classes inferiores tendem a fazer uso da mesma em relação a seus companheiros em muito maior proporção do que as demais. Nas classes mais favorecidas, a mulher com maior autonomia financeira, em estando em uma situação de violência, atualmente, tende a divorciar-se. Já as mais dependentes economicamente (e emocionalmente) de seus companheiros nas classes intermediárias, ainda que aufiram alguma renda, são as que por mais tempo se submetem a situações de violência física e psicológica. Por vezes, por toda a vida.