Eu sem Mim
Andrea
Campos
Recebo uma notificação do
Notificador Virtual de Mensagens: "Há uma notificação de Andrea Campos pra
você". Um frio percorre-me a espinha. A alma dá um sobressalto e o coração
avexa. Descolei-me de mim? Saí dispersando-me tanto ao ponto desse
tanto-ser-eu-inteira colocar-me muito mais do que além da beira de mim? Sim
estou à beira de mim e sou eu o à beira de mim e sou eu o precipício. Não posso
sequer cair em mim, se já me perdi do eu desse eu em mim esgotado. Esse eu
agora cifrado e que petulantemente alheio ao que fui e ao que ainda me sinto
sendo vem e notifica-me. Notifica-me de quê? Sou eu a que parte, sou eu a que
fica? Peço-me calma, calma, calma... Calma, apenas me escorreu a alma...
Belisco-me a pele, sim, sinto-me um eu, talvez um eu sem mim, mas com alguma
coisa que ainda me resta, mesmo que o que ainda me reste seja um não-eu-afim.
Coagulo-me. Estou intransitória. Mas o fato é que eu notifiquei-me e eu sou um
outro de mim, que é a mim desconhecido. Eu é um estranho que me aflige. Como
ouso bater-me a porta? Não, não estou pra ninguém, muito menos pra mim mesma.
Não, não me abrirei a porta. A porta está fechada e esse meu eu vem morder-me a
aorta. Não, não quero ver seus olhos, sim não suportaria olhar-me. Com que
humor eu me venho me visitar? Estou impreparada para o impreparável.
Preparo-me. Talvez eu me venha só poesia, talvez vingança, talvez desprezo,
talvez interrogação. Talvez vulnerável, talvez a ama seca. Não sei. Não quero
esse despropósito de eu vindo a mim. Chega. E o Notificador Virtual de
Mensagens continua a me importunar: "Há uma notificação de Andrea Campos
pra você". Decido olhar-me pelo buraco da fechadura. Não sei se me
reconhecerei. Ontem eu vi uma moça na padaria. Ela estava de costas. Eu estava
contra um espelho e eu pensei que as suas costas eram eu. Confundi-me de mim.
Não estou muito acostumada ao meu corpo e nem sei como mexo os cabelos ou os
coloco de frente ou de lado. Passo o dia inteiro vendo-me apenas às vezes. São
muitas poucas vezes pra que eu possa ser capaz de me reconhecer. Sim , então vi
que ela não era eu ao espelho. A que era eu ao espelho era outra.
Cumprimentei-a. Ela fez silêncio. Fomos embora. Mas agora não tenho a menor
ideia de como agir. Sinto-me cansada e sem saída engolfada dentro do meu
espanto. Algo em mim parou porque se corrompeu a esse outro eu. Decido olhar-me
a mim de frente, sem subterfúgios e leio a notificação de mim pra mim:
"Você tem 30 solicitações de mensagens". Mensagens? Eu estou me
pedindo mensagens? Contatos imediatos do terceiro grau de corpo presente?. Não,
não quero estar ausente de mim. Olho-me face a face, não reconheço meu cheiro e
nem a minha pele. Sim, eu já havia ouvido falar que a forma como ouvem a nossa
voz não é a forma como ouvimos a nossa voz. Então, curiosa sobre esse mim que é
outro, debruço-me sobre um mim-outro descolado e que também me estranha. O meu
mim-outro também está cansado, não me argui e nem me provoca. Apenas silencia à
minha espera. Recebo-o em meus braços. Ainda estamos descoladas e apenas lhe
pergunto como tem passado. Ela-eu me olha num sorriso em semi-tom como se eu já
soubesse a resposta. Mas o nosso lugar não é aqui. O nosso lugar é um para além
de nós. Afinal, mesmo divididas, temos em comum um antes, um agora e um porvir
... Digo-lhe: Preciso descansar-me em mim... Ela se aconchega a mim e me deita em
si... E assim seguimos, juntas e resignadas, para sempre
íntimas-desconhecidas... Fartas e sem nomes em nosso indissolúvel pacto de
sangue.
Pablo Picasso |
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