sexta-feira, 10 de junho de 2022

 Cada um cita o autor que quer de acordo com o que quer e com quem é...


Fui uma leitora de Monteiro Lobato na infância. E estou no grupo daqueles que defendem que a sua obra se mantenha escrita tal como foi, a despeito de revelar violências de raça, toda sorte de discriminações e conservadorismos. Isso porque sou a favor de que a história revele os homens e as mulheres, o mais próximo possível, de como, de fato, o são ou o foram. É indispensável a conservação da obra para a construção de sua crítica. 


Inarredavelmente, um grande escritor, sabemos que Monteiro Lobato foi um homem de seu tempo, mas, de forma alguma, um homem além de seu tempo. Mesmo no seu tempo, o escritor era conhecido e reconhecido como uma das vozes mais altas em defesa dos interesses das elites agrárias, tendo sido, ele mesmo, um grande fazendeiro. O criador de Jeca Tatu e de Urupês era um homem que zombava do trabalhador do campo e o menoscabava. O reacionário Lobato era explosivo em suas críticas não apenas em relação ao homem do campo, como também, no campo da estética. Ao tempo da Semana de Arte Moderna, Monteiro Lobato fez uma crítica virulenta e destruidora aos quadros da modernista Anitta Malfatti em um artigo jornalístico denominado "Paranoia e Mistificação". Na corrente mais conservadora da patologização, aconselhou tratamento psiquiátrico aos modernistas. 


Mas Lobato, assim como ainda o é hoje, também era citado por juristas, por grandes juristas como o imenso Rui Barbosa. Em 1919, Rui Barbosa discorreu sobre a Questão social e política no Brasil no Teatro Lírico do Rio de Janeiro durante a sua campanha eleitoral para a Presidência da República. Na sua fala, cita um trecho do livro "Urupês" de Lobato, no qual o mesmo demonstra a sua visão sobre o homem do campo. Rui não louva seu pensamento, mas sim, o rejeita peremptoriamente. Leiamos o trecho citado por Rui:


“De pé, não é gente. A não ser assentado sobre os calcanhares, não desemperra a língua, “nem há de dizer coisa com coisa”.


Após citar o trecho de Lobato, Rui continua:


“Não sei bem, senhores, se, no tracejar deste quadro, teve o autor só em mente debuxar o piraquara do Paraíba e a degenerescência inata da sua raça. Mas a impressão do leitor é que, neste símbolo de preguiça e fatalismo, de sonolência e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviência e hebetamento, o gênio do artista, refletindo alguma coisa do seu meio, nos pincelou, consciente, ou inconscientemente, a síntese da concepção que tem da nossa nacionalidade os homens que a exploram”.


Monteiro Lobato, no dia de ontem foi citado por um outro "jurista", também num contexto que dizia respeito a eleições presidenciais. Eleições no seu maior sentido que é o de eleger o que é melhor para um povo e para um país. Uma citação muito de acordo, pois, há clara convergência nas posições políticas e sociais de ambos. Não vou entrar aqui no incontestável mérito literário do texto que foi citado, a fábula "O Reformador do Mundo", cujo personagem "Américo Pisca-Pisca", insatisfeito com a natureza, e porque não dizer, com a natureza das Américas, reclama por francas reformas. Reformas essas, tidas tanto pelo citador como pelo citado, como "inúteis".  Muito menos, pretendo advogar pela não citação das obras de Lobato. Tomo a mim, tão somente, a pretensão de observar criticamente como se dão essas citações e em que contextos. Em relação ao contexto de ontem, apenas me permitam enaltecer esse belo encontro, mesmo que sendo esse encontro a antítese do que foi o "encontro" entre Lobato e Rui durante a sua campanha eleitoral presidencial, quando o então, "Águia de Haia" lutava por um Brasil republicano que superasse, de uma vez por todas, pensamentos como os de Lobato:  arcaicos e nocivos a uma Nação que se pretendia ser construída com as marcas da justiça social e do humanismo. O encontro de ontem, ora, ora, foi um sublime encontro das vozes da elite republicana desde sempre. Refletem a síntese que têm de nossa nacionalidade, esses homens que a exploram...


Cada um cita quem quer conforme o que quer e quem é...


ps: Apesar de ter sido o candidato mais votado em todas as capitais e grandes centros urbanos, Rui Barbosa foi derrotado no interior do país em razão da forte corrupção eleitoral, da compra de votos e do chamado "voto de cabresto"... E, ao que parece, ele continua sendo derrotado pelos mesmos motivos até hoje...








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