sábado, 9 de julho de 2022

 MÁRIO SETTE E MANUEL BANDEIRA: 


COMPANHEIROS DE BERÇO E DE  EVOCAÇÕES MODERNISTAS.


Não apenas o grande amor da vida de Mário Sette, Maria Laura, foi sua companheira de berço, tendo ambos nascido no mesmo dia e hora, como também foi  no mesmo dia 19 de abril de 1886 que nasceu o grande poeta Manuel Bandeira! Enquanto os  choros do primeiro eclodiam em um  sobrado da rua Princesa Isabel, os muxoxos do outro reverberavam no quarto de um outro sobrado na rua da Ventura, atual Joaquim Nabuco. Quanto às primeiras sílabas pronunciadas pelos dois "meninos novos" não lhes posso dizer, mas algo arrisco assegurar-lhes: a obra de Mário Sette e de Manuel Bandeira, não apenas dialogam, mas evocam uma a do outro, sendo a de Sette,na  prosa e a de Bandeira, na poesia.  Nas linhas de "Memórias Íntimas" de Sette, deparamo-nos com a confissão de seu primeiro despertar sexual nos "banheiros de mudar de roupa para os banhos salgados", Ao ler essa passagem não há como não evocarmos o poema "Alumbramento" de Bandeira,  com a diferença de que, no poema de Bandeira, não o "despertar sexual", mas "o primeiro alumbramento" ocorre em um desses banheiros de mudar de roupa não para o banho salgado, mas para o banho doce no rio Capibaribe. Em trechos do romance de Mário Sette, Senhora de Engenho,  é possível, também, evocar a poesia de Bandeira, como ocorre durante a narrativa de uma festa de São João. Nesse instante, quando os folguedos e balões rebrilham, o poema de Bandeira "Profundamente" nos assoma aos olhos. No entanto, muitos poderão afirmar: tratam-se de temas e costumes comuns àqueles tempos, sendo, portanto, muito provável que tenham sido vivenciados, do mesmo modo, não apenas por Bandeira e Sette, mas pela grande maioria dos meninos daquela época. No que concordo de pleno. A grande convergência, aqui, não é a convergência das experiências comuns, mas na forma como elas são ditas, no modo como são contadas, e tanto Sette quanto Bandeira, ao narrá-las, inauguram a palavra modernista. Bandeira, bem primeiro do que Sette, sejamos justos. E é no método genealógico utilizado para contar a história da cidade natal de ambos, Recife, que Sette e Bandeira têm enfim, a convergência plena. 


Em 1923, Gilberto Freyre encomenda a Bandeira que escreva um poema em homenagem ao Recife, brotando desse pedido o poema "Evocação do Recife". Já no início do poema, Bandeira anuncia que não contará a história da cidade no modelo tradicional: 


"Recife 

Não a Veneza americana

Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais

Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois 

- Recife das revoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura

Recife sem mais nada"               


 Ou seja, contará a história do Recife "sem mais nada", o Recife de suas memórias, de seus afetos, de seus costumes, de seu quotidiano. Em março de 1941, o então Presidente Getúlio Vargas ordenou que Mário Sette, já conhecido por suas crônicas sobre a cidade do Recife e, à época, funcionário dos Correios, fosse servir, por um ano, na Fiscalização do Porto do Recife, a fim de colher material para a escrita de uma obra sobre o Porto e a cidade. Essa obra seria a futura obra-prima "Arruar". "Arruar", assim como "Evocação do Recife" de Bandeira, inova ao encetar um método original de contar a história da cidade, não por uma linha com início, meio e fim, a descrever os seus eventos icônicos, mas pela alusão a seus costumes, ao seu quotidiano, às suas memórias afetivas. Não há como não estabelecermos esse diálogo evocativo entre a prosa "Arruar" de Mário Sette e o poema "Evocação do Recife" de Manuel Bandeira. E foi movida pela curiosidade em torno dessa convergência, que pus-me a pesquisar. E vejam o que achei! A referência a uma carta de Manuel Bandeira a Mário Sette na qual o mesmo fala desse encontro entre ambas as suas escritas! Escreve Bandeira a Sette:


"Enxergo nas suas crônicas de Arruar "o Recife sem mais nada" - simples e de memória saborosa." Ou seja, o mesmo Recife de sua "Evocação", uma vez que o verso "o Recife sem mais nada" é uma síntese desse poema seu...


Mário Sette e Manuel Bandeira, companheiros de berço, companheiros nas evocações modernistas, irmãos no amor pelo Recife. Onde estarão agora? Estão dentro de cada um de nós que os lê, vivos, profundamente...






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