sábado, 5 de março de 2022

 OS TRÊS BEM-AMADOS DA CADEIRA DE No. 19 da ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETRAS.





Hoje é um dia feliz. Um dia de celebração. Ao mesmo tempo, um dia nostálgico, dia de desalinhar e realinhar memória. A Cadeira de número 19 da Academia Pernambucana de Letras será ocupada, a partir de hoje, por nosso querido professor, colega e amigo SÍLVIO NEVES BAPTISTA. O mais novo imortal pernambucano. Mas, eu não posso deixar de pensar em seus antecessores, esses que, também, foram meus amigos. Não posso deixar de me lembrar  com alegria embolorada em tristeza, de João Cabral de Melo Neto. João tímido, retraído, gentil, mas não menos ativo e ousado, recebendo-me com tanto carinho em seu apartamento do Flamengo no Rio. Não posso deixar de pensar em seu sucessor na mesma cadeira, Marcus Accioly, amigo e companheiro que nunca deixou de apoiar-me em minhas investidas no campo do Direito & Literatura, havendo participado de vários eventos para os quais o convidei para falar sobre o tema na Universidade Católica. Marcus sempre disponível, atencioso, apesar de tantos compromissos, um dos quais, o aniversário de seu próprio pai! E, por fim, hoje, a cadeira que já foi de João, que já foi de Marcus, estará sob as letras de nosso querido Sílvio Neves Baptista, grande professor de Direito Civil, grande ensaísta, colega e amigo em tudo entre nós afetuoso e presente. Homenageio esses três grandes e queridos amigos escritores, ocupantes da cadeira de número 19 da Academia Pernambucana de Letras,  com o belíssimo poema de João Cabral de Melo Neto: "Os Três Mal-Amados". Vida e Luz para o nosso mais novo IMORTAL!


Os Três Mal-Amados


João Cabral de Melo Neto


Joaquim:


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.


O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.


O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.


O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.


Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.


O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.


O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.


O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.


O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.


O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.


O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

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