O
VÍRUS COROADO
As
fagulhas dos fogos de artifício do Réveillon de 2020 ainda
crepitavam quando o Presidente dos EUA anunciou, gloriosamente, da
altura de seu faustuoso poder, haver "eliminado" o chefe
militar do Irã. Este assassinato colocou o mundo em estado de alerta
e a iminência de uma terceira guerra mundial assomou-se como uma
ameaça assombrosa e real. A justificativa para esta "eliminação"
seria não uma nova Guerra, mas uma ação inadiável rumo a um
processo de construção da paz. Ao celebrar-se a morte de um ser
humano, estava-se, novamente, experimentando do gozo voraz de
destruição de seres humanos, cuspindo arrogância e nutrindo-se os
bilhões lucrados pela indústria da mortandade. O Irã anunciou que
se vingaria e mais teria feito se maior fosse, também, o seu poder
de destruição. Foi quando, nas vésperas do que seria uma nova
gloriosa guerra, a China anunciou a circulação de um novo vírus.
Um vírus letal e de alta transmissibilidade. Esse sim, glorioso em
sua vocação de paralisar a segunda maior economia do mundo e países
ricos da Europa, de causar um trilhão de dólares em perdas para a
economia mundial e o principal: glorioso em sua sanha de destruir, de
ceifar vidas, milhares de vidas. Para que guerras se temos o vírus?
Na
China, são mais de 3.000 mortos, na Itália, país acuado na
imperiosa rendição perpetrada pelo vírus, já se somam mais de
4.000 mortos, no combalido Irã, mais de 1.400 mortos. Computando-se,
até o momento, mais de 11.000 mortos em todo o mundo. No
indefectível país do Tio Sam, no país daquele Presidente que
alvoreceu o ano, praticando os prazeres da guerra, centenas de vidas
já foram capituladas. As suas ilhas da fantasia como Broadway e
Disneilândia, tiveram os seus portões fechados e apagaram as suas
luzes.
O
"guerreiro" vírus não escolhe o seu alvo por raça, cor,
bandeira, etnia, partido político, religião ou preferência sexual.
Alastrou-se na França em razão de um culto com milhares de
evangélicos, assim como cancelou o ramadã e a peregrinação de
milhares de muçulmanos a Meca no Irã. De sua altura microscópica,
o vírus revela o nosso real tamanho: o de insignificantes. E junto à
nossa insignificância, a inutilidade de tantas outras
insignificâncias nossas.
Estamos
vivendo um momento de polarização, de disputas pela hegemonia de
ideias, temperadas por um ódio insano e paroxístico, potencializado
pelo avanço cibernético como jamais experimentado na história da
humanidade. A sanha de nos destruirmos uns aos outros moralmente e
diuturnamente, a prática de assassinatos virtuais, nunca esteve tão
em voga. Mas, agora, há o vírus, que nos mata democraticamente, não
importa a "razão" de nosso lado.
Dizem
que é originado de morcegos, poderia ter sido originado de ratos
como n'A Peste de Camus. Muitos alegam que o vírus é fruto de uma
conspiração. Teses conspiratórias que tão somente endossam o
nosso afã de nos colocarmos sempre em um lugar de controle sobre o
que nos acontece. Afinal, o vírus é um predador, mas, pelas teses
conspiratórias, fomos nós, seres humanos, os deuses que o criaram.
E se nas guerras, morrem os soldados, mas não os generais, do vírus,
não há quem escape. Do atleta que se arvora inquebrantável do alto
de sua saúde ilusoriamente invencível, ao Presidente da nação
mais poderosa do mundo que, a princípio, se negou a fazer um teste
para a confirmação de ter sido ou não contaminado pelo vírus, uma
vez que fazer o teste já seria fornecer atestado de vulnerabilidade.
Estando a sua política pública de saúde, vulnerabilizada, sob a
pressão da imprensa, não houve outro caminho que não fosse se
submeter ao teste e tentar tomar as rédeas do que pode vir a ser uma
hecatombe em seu país.
Não
adianta nos enganarmos, somos todos precários, vulneráveis,
vencíveis, matáveis. Carnes perecíveis, enfim. O vírus nos grita,
eloquentemente, essa nossa face no espelho. Mas, ele, também, nos
desafia. Nos desafia a debelarmos as nossas diferenças e a nos
unirmos nessa missão de destruí-lo. Nos desafia a revermos as
nossas inúteis práticas de ódio e a pormos em ação, práticas de
respeito e de solidariedade.
O
vírus nos revela, sim, a nossa pequenez, menor que seu tamanho
infinitesimal. Mas, também, nos conclama a nos revelarmos uns aos
outros de um tamanho outro.
Para
ser vencido, não bastam os milhões da ciência. Bilhões serão
insuficientes para aniquilá-lo se sobre o vírus não nos
agigantarmos. Se não nos agigantarmos não apenas sobre a nossa
incontornável perecibilidade, mas, sobretudo, em nossa potência de
nos reinventarmos em humanidade e em generosidade.
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