sábado, 21 de março de 2020


O VÍRUS COROADO


As fagulhas dos fogos de artifício do Réveillon de 2020 ainda crepitavam quando o Presidente dos EUA anunciou, gloriosamente, da altura de seu faustuoso poder, haver "eliminado" o chefe militar do Irã. Este assassinato colocou o mundo em estado de alerta e a iminência de uma terceira guerra mundial assomou-se como uma ameaça assombrosa e real. A justificativa para esta "eliminação" seria não uma nova Guerra, mas uma ação inadiável rumo a um processo de construção da paz. Ao celebrar-se a morte de um ser humano, estava-se, novamente, experimentando do gozo voraz de destruição de seres humanos, cuspindo arrogância e nutrindo-se os bilhões lucrados pela indústria da mortandade. O Irã anunciou que se vingaria e mais teria feito se maior fosse, também, o seu poder de destruição. Foi quando, nas vésperas do que seria uma nova gloriosa guerra, a China anunciou a circulação de um novo vírus. Um vírus letal e de alta transmissibilidade. Esse sim, glorioso em sua vocação de paralisar a segunda maior economia do mundo e países ricos da Europa, de causar um trilhão de dólares em perdas para a economia mundial e o principal: glorioso em sua sanha de destruir, de ceifar vidas, milhares de vidas. Para que guerras se temos o vírus?
Na China, são mais de 3.000 mortos, na Itália, país acuado na imperiosa rendição perpetrada pelo vírus, já se somam mais de 4.000 mortos, no combalido Irã, mais de 1.400 mortos. Computando-se, até o momento, mais de 11.000 mortos em todo o mundo. No indefectível país do Tio Sam, no país daquele Presidente que alvoreceu o ano, praticando os prazeres da guerra, centenas de vidas já foram capituladas. As suas ilhas da fantasia como Broadway e Disneilândia, tiveram os seus portões fechados e apagaram as suas luzes.
O "guerreiro" vírus não escolhe o seu alvo por raça, cor, bandeira, etnia, partido político, religião ou preferência sexual. Alastrou-se na França em razão de um culto com milhares de evangélicos, assim como cancelou o ramadã e a peregrinação de milhares de muçulmanos a Meca no Irã. De sua altura microscópica, o vírus revela o nosso real tamanho: o de insignificantes. E junto à nossa insignificância, a inutilidade de tantas outras insignificâncias nossas.
Estamos vivendo um momento de polarização, de disputas pela hegemonia de ideias, temperadas por um ódio insano e paroxístico, potencializado pelo avanço cibernético como jamais experimentado na história da humanidade. A sanha de nos destruirmos uns aos outros moralmente e diuturnamente, a prática de assassinatos virtuais, nunca esteve tão em voga. Mas, agora, há o vírus, que nos mata democraticamente, não importa a "razão" de nosso lado.
Dizem que é originado de morcegos, poderia ter sido originado de ratos como n'A Peste de Camus. Muitos alegam que o vírus é fruto de uma conspiração. Teses conspiratórias que tão somente endossam o nosso afã de nos colocarmos sempre em um lugar de controle sobre o que nos acontece. Afinal, o vírus é um predador, mas, pelas teses conspiratórias, fomos nós, seres humanos, os deuses que o criaram. E se nas guerras, morrem os soldados, mas não os generais, do vírus, não há quem escape. Do atleta que se arvora inquebrantável do alto de sua saúde ilusoriamente invencível, ao Presidente da nação mais poderosa do mundo que, a princípio, se negou a fazer um teste para a confirmação de ter sido ou não contaminado pelo vírus, uma vez que fazer o teste já seria fornecer atestado de vulnerabilidade. Estando a sua política pública de saúde, vulnerabilizada, sob a pressão da imprensa, não houve outro caminho que não fosse se submeter ao teste e tentar tomar as rédeas do que pode vir a ser uma hecatombe em seu país.
Não adianta nos enganarmos, somos todos precários, vulneráveis, vencíveis, matáveis. Carnes perecíveis, enfim. O vírus nos grita, eloquentemente, essa nossa face no espelho. Mas, ele, também, nos desafia. Nos desafia a debelarmos as nossas diferenças e a nos unirmos nessa missão de destruí-lo. Nos desafia a revermos as nossas inúteis práticas de ódio e a pormos em ação, práticas de respeito e de solidariedade.
O vírus nos revela, sim, a nossa pequenez, menor que seu tamanho infinitesimal. Mas, também, nos conclama a nos revelarmos uns aos outros de um tamanho outro.
Para ser vencido, não bastam os milhões da ciência. Bilhões serão insuficientes para aniquilá-lo se sobre o vírus não nos agigantarmos. Se não nos agigantarmos não apenas sobre a nossa incontornável perecibilidade, mas, sobretudo, em nossa potência de nos reinventarmos em humanidade e em generosidade.








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