domingo, 21 de junho de 2015

Carta escrita por Beethoven no outono de 1802 conhecida como "Testamento de Heiligenstadt" destinada a ser lida por seus irmãos após a sua morte.

Tradução direta do alemão de Manuel Malzbender.




Ó vós, humanos, que me julgais ou declarais hostil, obstinado ou misantropo, como sois injustos para comigo, pois não sabeis as causas secretas que me forçam a parecer como tal, desde a infân­cia que o meu coração e o meu espírito se inclinam para o terno sentimento da afeição, e sempre estive disposto a realizar gran­des actos, mas considerai que nos últimos seis anos me tem ator­mentado um estado lastimável, agravado por médicos incompe­tentes, de ano para ano iludido com a esperança de melhorar, e, finalmente, forçado a encarar a perspectiva de um mal perma­nente (cuja cura poderá durar anos se não for de todo impossí­vel), nascido com um temperamento vivo e ardente, sensível até às distracções da sociedade, cedo tive de me isolar dela e passar a minha vida em solidão, e quando por vezes quis superar tudo isto, oh como fui duramente repelido pela redobrada triste expe­riência da minha surdez, contudo não me foi possível dizer às pessoas: falai mais alto, gritai, pois eu sou surdo, ah como poder divulgar a fraqueza desse sentido que eu deveria possuir num grau mais perfeito do que os outros, um sentido que outrora pos­suíra na sua maior perfeição, numa perfeição que certamente só poucos na minha profissão possuem ou possuíram - oh, não posso, por isso perdoai-me quando vereis que me retiro, eu que gostaria tanto de me juntar a vós, a minha desventura é dupla­mente penosa pois, devido a ela, sou obrigado a ser mal julgado, para mim já não poderá existir prazer na vida em sociedade, nem conversações distintas, nem mútuas confissões, só me é permi­tido juntar-me à sociedade quando uma estrita necessidade o exige, sou obrigado a viver como um exilado, quando me apro­ximo de um grupo de pessoas aflige-me uma ardente angústia, com receio de correr perigo de dar a perceber o meu estado -assim vivi este meio ano que passei no campo, seguindo o con­selho de um médico sensato, a poupar o mais possível o meu ouvido, o que quase correspondia à minha actual disposição natural, embora por vezes arrastado pela necessidade de compa­nhia me deixasse seduzir, mas que humilhação, quando alguém ao meu lado ouvia o som longínquo de uma flauta, enquanto eu nada ouvia, ou quando alguém escutava o canto do pastor, e eu mais uma vez nada ouvia, esses acontecimentos levaram-me quase à beira do desespero, e pouco faltou para eu ter posto um fim à minha vida - só ela, a arte, me deteve, ah pareceu-me impossível abandonar o mundo antes de ter produzido tudo aquilo para o qual me sentia predisposto, e assim prolonguei esta vida miserável — verdadeiramente miserável, com este corpo de tal modo frágil, que qualquer mudança súbita consegue fazer passar do melhor estado ao pior — paciência —, sim, é ela que terei então de escolher como guia, dizem, e assim o fiz - espero que a minha resolução de perseverar seja duradoura, até ao momento em que as impiedosas Parcas desejem quebrar o fio, talvez melhore, talvez não, mas estou sereno - apenas com 28 anos forçado a ser filósofo, não, não é fácil, e para um artista muito mais difícil do que para qualquer outro — Deus! tu con­templas do alto a minha alma, conhece-la, sabes que o amor ao próximo e a vontade de fazer bem residem nela, ó humanos, quando um dia lerdes isto, pensai que fostes injustos para comigo, e que o desditoso se console por ter encontrado alguém como ele, que, apesar de todos os obstáculos da natureza, fez sempre tudo o que esteve no seu poder para pertencer ao mundo dos homens e artistas dignos — vós, ó meus irmãos Karl e Johann, logo que eu tiver morrido e o professor Schmid ainda estiver vivo, pedi-lhe em meu nome que descreva o meu mal, e juntai esta folha escrita à história da minha moléstia, para que ao menos o mundo se reconcilie tanto quanto possível comigo - ao mesmo tempo declaro-vos ambos herdeiros da minha pequena fortuna (se for permitido chamar-lhe assim), reparti-a honestamente, entendei-vos e ajudai-vos um ao outro, o que me fizestes de mal, isso vós o sabeis, já vos perdoei há muito, a ti irmão Karl agra­deço particularmente a dedicação que por mim tens demonstrado nos últimos tempos, o meu desejo é que tenhais uma vida melhor e com menos preocupações que a minha, recomendai aos vossos filhos a virtude, apenas ela poderá dar felicidade, não o dinheiro, falo por experiência própria, foi ela que me ergueu da miséria, só a ela devo, como à minha arte, não ter terminado em suicídio a minha vida - adeus e amai-vos um ao outro -, agradeço a todos os amigos, nomeadamente ao príncipe Lichnowski e ao professor Schmidt. — Desejo que os instrumentos musicais do príncipe L. sejam guardados por um de vós, mas que nenhuma disputa surja entre vós por causa disso, porém, logo que vos possam servir para algo mais útil, vendei-os, como fico feliz ao saber que, mesmo debaixo do meu túmulo, vos poderei valer - então, assim seja - caminho com alegria ao encontro da morte - Se ela vier antes de eu ter tido a oportunidade de realizar todas as minhas capacida­des artísticas, então terá chegado cedo de mais, apesar do meu triste destino, e eu desejaria que a minha morte tardasse — no entanto também ficarei satisfeito se ela vier logo, pois não me libertará ela de um estado de tormento infinito? — Vem, quando quiseres, com coragem te enfrentarei — adeus, e não me esque­çais inteiramente depois da minha morte, bem o mereço da vossa parte, pois pensei muitas vezes em vós durante a minha vida, desejando fazer-vos felizes, sede-lo -

Heiligenstadt, 6 de Outubro de 1802
Ludwig van Beethoven.


Heiligenstadt, 10 de Outubro de 1802

   Assim me despeço  com tristeza de ti, amada esperança - que comigo trouxe ao vir para aqui, a esperança de ser curado pelo menos até um certo ponto, essa esperança terá agora de me abandonar inteiramente, tal como as folhas de Outono caem murchas, também ela foi secando para mim, como cheguei assim devo partir - até o próprio ânimo - que tantas vezes me inspirou nos belos dias de Verão - também ele desapareceu - ó Providência - deixa-me viver ainda um dia puro de alegria - há quanto tempo o eco efusivo da verdadeira alegria me é desconhecido - ó quanto - ó quanto ó Deus - poderei de novo voltar a senti-lo no templo da natureza e da humanidade - Nunca? - não - oh isso seria demasiado cruel - 

Trechos citados por Grout et Palisca in História da Música Ocidental, Lisboa: Gradiva, 2007.





Nenhum comentário:

Postar um comentário