quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sobre Elisabeth I, Clarice Lispector e Bertrand Russell... Ou melhor, sobre todos nós.
                                                                                                     Andrea Campos



"Todo o meu reino por um momento de tempo", teriam sido as últimas proverbiais palavras da rainha Elisabeth I da Inglaterra em seu instante  de morte. O tempo, esse para o qual nascemos, esse que, ao pensarmos que o  matamos, ao final, é ele que, machadianamente,  nos enterra. A vida do ser humano sobre a terra é um eterno jogo de xadrez, não com a morte, caro Bergman, mas, principalmente, com o tempo, se é que ambos no fundo não sejam o mesmo parceiro contra o qual jogamos.. Não é o tempo apenas um nosso constante objeto de anseio e desejo, refletidos nas últimas palavras da rainha Elisabeth I, confundindo-se com a própria vida, mas também uma nossa fonte primordial de angústia, e aqui, sem deixar de, também, confundir-se com ela.  Diante da leitura de reiteradas citações acerca do Conto "Amor" de Clarice Lispector, resolvi relê-lo integralmente, pois lembrava-me de ser apenas um factoide ocorrido a uma prosaica e quotidiana dona de casa. Claro que nada em Clarice é "apenas" e é sobre esse "apenas" que pretendo lançar algumas luzes. O Conto não se trata apenas de uma mulher a quem coube uma vida de mulher, casada, com filhos, com uma casa que, na maior parte do tempo não prescinde dela e nem ela prescinde da casa. Não é apenas sobre uma mulher sucumbida e conivente a um modelo patriarcal e machista que escamoteia o livre existir, o livre pensar e o livre amar. Não é apenas um conto sobre uma mulher que se angustia diante da hora perigosa da tarde, quando nada demanda por ela, e tudo está livre, inclusive, dela mesma para acontecer. Não é apenas sobre a culpa dessa mulher voluntariamente enquadrada diante dos acontecimentos que estão fora de seu quadrado tão cuidadosamente planejado e protegido. Acontecimentos contra os quais não apenas ela protege a si, mas inclusive aqueles que habitam a sua rede de proteção, tal como o seu marido a quem ela diz "Eu não quero que nada lhe aconteça" e de quem ela obtém a resposta "deixe que, ao menos, me aconteça de explodir uma panela". Não, não se trata apenas disso. Esse sentimento eu tive quando, ao ler o conto, identifiquei-me com a angústia de Ana, apesar de ser uma mulher  totalmente antitética a mim, pois que para matar a minha própria angústia diante da vida e do meu tempo, escolhi o caminho da independência e da liberdade diante das instituições, não aceitando desempenhar os papéis prognosticados como os de "uma vida de mulher". No entanto, o porquê dessa identificação com a angústia de Ana, uma mulher tão antitética a mim, clarificou-se hoje, ao ler um texto de Bertrand Russell "A Conquista da Felicidade"  a fim de, com ele, fundamentar uma peça jurídica trabalhista. Diz Russell "A maioria das pessoas que se vê livre para ocupar seu  tempo como quiser fica indecisa, sem que lhe ocorra a ideia de algo suficientemente agradável que valha à pena ser feito. E, qualquer que seja a decisão, aparece a desagradável sensação de que teria sido melhor fazer algo diferente. A capacidade de sabermos empregar de forma inteligente  nosso tempo livre é o último produto da civilização e, por enquanto, há poucas pessoas que alcançaram esse patamar [...] Quase todos os trabalhos proporcionam a satisfação de matar o tempo [...] e essa satisfação basta para que inclusive aquele que tem um trabalho aborrecido seja, a médio prazo, mais feliz do que aquele que não pode contar com isso". Ou seja, a minha angústia se irmana à angústia de Ana, à angústia da rainha Elisabeth I e à angústia da qual trata o grande Bertrand Russell, no que temos de humanamente universal e comum: a nossa angústia diante de nosso tempo de vida. E é sobre isso que também trata o texto de Clarice: a angústia que sentimos todos nós diante do tempo que dispomos. O que fazer com ele, à fim de não mergulharmos no abismo do sem sentido? Para não sermos abocanhados pelo tédio, pelo insignificado e pelo insignificante de nossas próprias vidas? Uns inventam para si uma vida totalmente enquadrada, aos moldes de Ana, personagem de Clarice, enquadramento social e comportamental esses que só são abalados com o imprevisível do amor. Outros, pelo caminho oposto, inventam para si uma vida de máxima  libertação dos padrões vigentes estabelecidos, ao procurar, na medida do possível, não se institucionalizar, seja a um casamento, seja a uma família, seja ao próprio Estado. O que ambos têm em comum é que estão a todo o tempo inventando aquilo que os ajuda a se manterem à deriva sobre o abismo, sem afundar. Em ambos os casos, seja no enquadramento, seja na libertação, tenta-se escapar de uma angústia diante do tempo e em ambos os casos, inclusive no primeiro, no qual arrodeia-se de marido e filhos corre-se sempre o risco de se cair na máxima  solidão, a solidão de não amar. Sendo, então, essa solidão não só um privilégio dos "presos",  isso porque os pretensos "libertos"  também têm o amor como um alto risco, o risco de perderem as suas liberdades, assim como os enquadrados o têm como um alto risco, o de perderem as regalias das quais gozam em suas prisões. Porque foi para uns, a liberdade, e para outros, a prisão, o que foi escolhido como forma de "matar" o tempo e evadir-se do nada e da solidão,  o que foi escolhido como via de arrefecer e proteger-se da angústia de existir. Onde habitará, então, a conquista da felicidade, título do texto de Russell, o qual eu ainda não terminei de ler? Arriscaria dizer que o espaço da felicidade seria tanto fora da prisão, como fora da total liberdade. O limite tanto para um como para o outro seria o início da náusea.  A náusea é o que sentimos quando experimentamos o tempo não como espaço de vida, mas como espaço de uma dolorosa vertigem. É fora da prisão e da liberdade nauseantes que encontramos o nosso melhor lugar: o lugar de nossa dignidade. E é só nele que não mais nos angustiamos com o nosso próprio tempo, mas lhe damos as  mãos. E é de mãos dadas com ele que, sem angústias, do alto de nossas dignidades que é o lugar onde não mentimos pra nós mesmos e somos inteiros, que seremos dignos  para viver e, sem medos, dignos de amor e de amar.




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