domingo, 23 de agosto de 2015

                                                                                         No Trem 
                                              (em torno do Conto "A Partida do Trem" de Clarice Lispector)
                                                                                                                       Andrea Campos




Menino, eu nem te conto quem eu encontrei ontem! Você não vai acreditar! Ângela Pralini! Sim, era ela! Com todas as suas letras, inspirações e expirações: e-l-a! Sabe, devo confessar que nunca fui nenhuma clarisófila, muito pelo contrário! Fui mocinha precipício em vertigem abismal constante, forjada em vácuos, equilibrando-me pelas bordas. Não, eu não correria o risco de lê-la. Nenhuma mão pra me salvar, só eu, eu só solta, à deriva, empurrada ao instante pra o fundo do nada. Mas, ela estava lá, Ângela Pralini, com todas as letras envolta nas letras de um conto intitulado "Partida do Trem". Não, aquele livro não poderia ser meu, estava ali por engano, alguém o havia deixado naquela minha estante da casa avoenga. Corri os olhos para a sua folha de rosto e, perplexa, li meu nome ali escrito com todas as letras. Garrafais. Caí em uma armadilha? Abaixo de meu nome, a cidade e a data: vinte e seis de junho de mil novecentos e noventa e três. Essa data existe? Sim, eu era mesmo uma mocinha e como todas as mocinhas, em algum momento... transgredi? Fui de encontro aos meus princípios? Li o que não queria, li o que não devia? Não importa. O crime estava feito. E perfeito. Nenhum rastro de minha leitura, eu que sou uma contumaz rabiscadora, anotadora e desvirtuadora do texto alheio. O livro estava sem máculas, não deflorado. Talvez eu tenha praticado, tão apenas, os atos preparatórios de meu ilícito. Pela integridade do livro, abandonado, tão somente, aos fungos, convenci-me de que, de fato, eu nunca estivera lá. Olhei a sua capa que não parava de me perguntar "Onde estivestes esta noite?". Ora, ora, não precisa me chamar por "vós", pode me chamar de "você", no máximo, por "tu"!


Em mocinha, encantei-me por trens, por viajar de trem. O meu primeiro conto, iniciava-se com uma senhora viajando num trem, revivendo o seu passado. No sumário dos contos do livro improvável, pois sim, se não falei, tratava-se de um livro de contos, enxerguei logo um conto meu conhecido "É pra lá que eu vou". Decidi que não seria pra lá que eu iria, pra lá pra onde já fui tantas vezes, pra lá onde já foram tantos os reveses, pra lá onde já estou anoitecida. Atraiu-me, então, um outro título "Partida do Trem". Pensei "é pra lá que eu vou!". Comecei a leitura e lá estava ela: Ângela Pralini. Eu já suspeitava que ela fosse o alter-ego dela. Logo dela que eu sempre evitei e tive medo, que eu nunca quis espreitar na porta entreaberta. De repente, fiquei apavorada. Será que ela apareceu ali pra mim de propósito como uma assombração, pronta pra puxar meu pé enquanto eu dormia pra o seu texto? Um pouco mais adiante, nos trilhos do conto, ela dizia que havia tentado ler Ulisses de Joyce, mas que abandonara o livro porque o achara muito chato. Oh, céus, porque ela vem falar justamente sobre o livro que eu estou lendo? Sobre o livro que achei, inclusive, próximo da angústia e das cores dela? E ela não pode negar a sua influência, porque o nome de seu cachorro é Ulisses! Se bem que pode ser o Ulisses de Homero e não o Ulisses de Joyce... Mas é Ulisses, esse cão todo dela em toda a sua humanidade canina... Tergiversei.



Finalmente, estávamos nós duas em um vagão de trem, saindo de viagem por sobre os nossos próprios trilhos... Quer dizer, nós duas, não, nós três! Dona Maria Rita também estava lá. Dona Maria Rita: o nosso amanhã e o nosso futuro. Dona Maria Rita, uma velhinha digna. Não, dona Maria Rita, a senhora não é velha! Eu é que estou pra lá de antes da pré-história, quando sequer havia a escrita! Dona Maria Rita, a senhora é jovem, juveníssima! Eu é que sou antiga, tudo que me acontece é o já acontecido, eu já nem sei se caibo em qualquer acontecimento, de tão já acontecida que sou... Dona Maria Rita, a senhora, braços largos, viaja em direção a um abraço. Abraço pra mim é luta e espanto, eu que sou do tempo em que sequer se ficava sobre os dois pés. Eu a primata, a selvagem, em grunhidos, sem voz. A senhora é o futuro, dona Maria Rita, regozige-se! Pobre de mim que de tão vencida em priscas eras, não conheci as letras e, nem ao menos, sei escrever seu nome, dona Maria Rita...



Partimos todas. Partimos juntas. Ângela Pralini fugindo de um amor chamado Eduardo. Eu até já tive um amor, ou tenho, não sei bem ao certo, um amor chamado Eduardo. Mas eu nunca o chamei... O trem começa a balançar. O corpo levemente se excita. Umedeço... Como eu já conhecia Ângela e o seu destino, senti-me mais segura de estar com ela. Sei de cor seus sopros e pulsações. Sei o que se passará em todas as próximas suas curvas, em suas linhas retas, escorregadias. Olhei pra ela como dona da situação, senhora de seus domínios. Não, em mil novecentos e noventa e três eu não poderia ler esse conto, estar ali com ela, eu que era forjada em vácuos. Mas, agora que sou mulher transvivida, insubmissa e independente, olho pra ela, inclusive, com compaixão, pois é ela, agora, a mocinha mais nova, vulnerável e indefesa. Fico até pensando do alto de minha força "oh, o que eu poderia fazer por você, Ângela Pralini?". Nesses devaneios, cabeça inclinada sobre a cortina da janela do trem, docemente, adormeço. O trem pára em uma estação, acordo num súbito e em sobressalto vejo que Ângela Pralini não mais está lá em seu assento. Não, não é possível, será que ela foi embora?! A sua valise e o seu casaco também não estão na maleteira!  Sim ela partira... Eu sabia, eu sabia, desde sempre eu sabia que eu não poderia correr o risco! Eu que confiei, confiei, confiei nela e adormeci! Minha garganta deu um nó. Minhas lágrimas congelaram empedernidas em meus olhos antes que ousassem cair. Apenas à minha frente, restava dona Maria Rita em sono profundo, inamovível. O trem deu um solavanco de partida, quase caí pra frente, sem ter nenhuma mão e nada em que me segurar. Derrapei pelas bordas do vácuo abismando em vertigem num desmaio que se anunciava. Mas antes de atingir o rés do chão, num acesso de mim, alcei as  mãos para dentro do sono de dona Maria Rita, segurei com avidez o seu sonho e sobre ele, com as mãos ainda trêmulas, aprendi a escrever meu nome.











Nota: Ângela Pralini é a protagonista do último livro de Clarice Lispector, escrito às vésperas de sua morte "Um Sopro de Vida". Ontem, com surpresa, encontrei um livro de Clarice que comprei durante a minha adolescência e não li (eu não a lia). Com surpresa vi que a personagem Ângela Pralini era a protagonista do conto que escolhi pra ler "Partida do trem". Na minha interpretação do conto, Ângela (que vejo como um alter-ego de Clarice) abandona o seu dia de amanhã, ao abandonar dona Maria Rita dentro do trem (o trem da vida?) sem se despedir. De fato ela morreria (Clarice Lispector) apenas alguns anos depois da publicação do conto. Já o meu conto "No trem" trata de minha relação com Ângela e com a autora dentro e fora desse conto e aí, a história já é outra...


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