sábado, 4 de julho de 2015

A arte de Nicolas Poussin (Les Andelys, 1594 - Roma, 1665).





Fui apresentada a Poussin por Marguerite Yourcenar. Explico-me. Eu tinha dezessete anos e um amigo de nossa família, o querido filósofo Nélson Saldanha presenteou-me com o maravilhoso livro "Peregrina e Estrangeira" de Marguerite. É um livro de ensaios, anotações e fragmentos de diários de viagens de Marguerite Yourcenar. Este livro, que ainda tenho, que me acompanhou como um talismã quando fui estudar sozinha na Europa aos 22 anos de idade e que, de quando em sempre, releio alguns trechos, foi um acontecimento em minha vida. Diante dele, guardei meus gestos de menina e tomei um ar grave, de quem se acha que está ficando séria e adulta, ao começar a estabelecer um diálogo com aquela mulher fascinante, erudita e universal. A cada um terço de página dos ensaios lidos eu tinha que parar e pesquisar para entender sobre o que Marguerite estava falando e o fazia de forma metódica e aplicada, escrevendo as explicações para termos ou nomes nos cantos das páginas com letras desenhadas, num tempo em que não havia Internet (vi agora, em uma das linhas da página 61 do livro, o nome Veronese e sobre ele, a minha letra delicada e adolescente me dizia "pintor renascentista italiano", delicadamente, sorri...rs). Mas ao ir ao encontro de outros livros eu me sentia a própria peregrina, mesmo que ainda  tão estrangeira naquele mundo que ela a mim descortinava. Sentia-me honrosamente convidada ao périplo, convidada ao mundo da cultura e das viagens solitárias. Marguerite acenava-me essa possibilidade. E desde então, para sempre a amei e dei-lhe as minhas mãos.

Mas voltemos a Poussin. Um dos ensaios do livro trata da pintura de Poussin. Confesso que fui tomada por tal encanto ao ler esse nome que, até hoje, posso ouvir Marguerite sussurrando-o, suavemente, ao meu ouvido. Poussin é um pintor francês clássico do séc. XVII que tão bem retratou a cultura greco-românica tão cara a Marguerite. São muitos os quadros dele que gosto, pelas cores, pelos movimentos e pelos dramas clássicos encetados. Mas, há um quadro em específico, um que está no MASP em São Paulo "Himeneus travestido em uma dança em honra a Príapo" que me chama particularmente a atenção e mobiliza-me tamanha a atualidade de seu motivo. Nele há um grupo de mulheres em torno de Príapo, adorando-o e reverenciando-o. Sempre vi Príapo, nesse quadro, como um falo em riste e a cena como uma fotografia de nossa cultura falocêntrica. Esse falo representa, pra mim, não apenas o órgão sexual masculino, mas o dinheiro, a ambição, a competitividade, as hierarquias, o culto às armas, a cultura da força e da virilidade, em detrimento da doçura e da solidariedade. Não sou contra o falo e os seus atributos, verdadeiros foguetes que nos levam a Marte através da história, mas questiono a sua totemização. Questiono a postura feminina, mesmo em tempos de emancipação política e financeira, girando, diria que, até mesmo, desesperadamente, em torno de virtuais "falos de ouro", indispensáveis para lhes conferir uma identidade e um lugar no mundo. Quanto a isso lembro-me  de uma verdade que sempre esteve aí e que Lacan tão somente ajudou a revelar "a mulher é o falo".

Há alguns anos, o quadro do MASP passou por uma restauração e nela foi descoberto o que eu, há tempos, já intuía: No quadro há um falo em riste que é, inclusive acariciado, por uma das mulheres que está em seu entorno. Nada a opor-me a essa carícia. É de carícias que a história humana precisaria ser feita. Infelizmente a cultura estritamente falocrática mais nos desfaz do que nos faz carícias... 

Quanto ao quadro, cuja descoberta nas salas do MASP integra uma das minhas peregrinações solitárias, trata-se de uma máxima obra-prima desse pintor que Marguerite me ensinou a prestar atenção e a olhar como se olha o mundo: de forma não estrangeira, ainda que nele estejamos apenas de passagem.

















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