sábado, 4 de julho de 2015

"A vida é a arte do encontro". Quando Marguerite Yourcenar encontrou Virginia Woolf.



"Traduzi para o francês As ondas, penúltimo romance de Virginia Woolf, e não o lastimo, pois dez meses de trabalho foram recompensados por uma visita a Bloomsbury e duas breves horas passadas junto a uma mulher ao mesmo tempo tímida e resplandescente, que me recebeu num quarto invadido pelo crepúsculo.

(...)

Para ela, o olhar é mais importante do que o objeto contemplado, e nesse vaivém do lado de dentro para fora que constitui todos os seus livros, as coisas acabam por tomar o aspecto curiosamente irritante de chamariz para a vida interior, de laços aos quais a meditação submete seu frágil pescoço com o risco de se estrangular, de espelhos para as cotovias da alma.
           "O olho não é um mineiro", diz Virginia Woolf, "assim como não é um mergulhador nem procura tesouros escondidos. O olho flutua molemente ao sabor da corrente do rio." Poderíamos classificar os poetas levando-se em consideração a qualidade do olhar, e perceberíamos então que a definição de Virginia Woolf aplica-se sobretudo a ela só. O olho incansável de Balzac busca tesouros escondidos. E poderíamos mencionar também o grande olho-espelho de Goethe, evocar sem irreverência o farol às vezes cego que foi o olho de Hugo, e comparar os belos olhos de Rilke, Novalis ou Keats ao olhar mágico e trêmulo dos astros. Em Virginia Woolf assistimos a um fenômeno muito diferente, e talvez mais raro: o próprio olho, tão natural quanto uma corola, dilatando-se e retraindo-se alternadamente como um coração. E quando penso ao mesmo tempo no martírio que é o trabalho da criação para todo grande artista, e na quantidade fantástica de imagens novas que a literatura inglesa deve a Virginia Woolf, não posso me impedir de pensar em santa Luzia de Siracusa, ofertando os seus dois olhos admiráveis aos cegos de sua ilha natal."

Marguerite Yourcenar in "Peregrina e Estrangeira", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.




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