segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Versos

 VERSOS AO ACASO (ANDREA CAMPOS)


Há noites que a palavra não vem, são noites de lua nova e eu a chamo de nome-lua para que ela se inscreva em mim e ilumine a minha pele, mesmo que não esteja escrita junto às estrelas, lá fora...


Há dias que a palavra amanhece como um sol, vejo-a brilhar de minha janela "não há de ser nada, é só uma palavra!", penso. Mas o corpo sua, a pele freme, a alma queima e eu tenho que me levantar correndo pra fechar as cortinas...


São só palavras, são só palavras, são só palavras... Mas elas me enlaçam, me alteiam como um balão aceso em fogo a inflamar o rumo e a direção de minha alma e de meu corpo...


A palavra vem e respira em mim, onduleio sôfrega com seus ais e transpiro vírgulas,  interjeições... Fico tonta, vou me esquecendo dos sinais. Ela me detém e me despe de metáforas, travessões, metonímias, pontos finais. E assim nós nos amamos nesse amor de palavra intraduzível como um alfabeto de animais.


Peço à palavra que me dê a mão, que me olhe nos olhos, pronuncie meu nome, derrame em mim a sua voz. Mas ela só se desenha, se apaga, se reescreve, se arqueia e se deita silente em minha cama. E, assim, sou presa de seu corpo, rendida e enredada por todas as letras de seus dedos.


Esbarro em uma letra e me arranho. Seu fonema me corta o baixo-ventre e seu sentido me esmaga. Entre o eu e o não-eu a letra me tece por entre os fios do escuro. Galopo sobre o seu som e o seu trote faz esvoaçar seus sinais. A letra em mim goteja cintilâncias. Gotas de gozo faiscantes vão escorrendo sobre a pele dos sentidos. Encharcada, a letra ecoa sibilante o meu chover a cântaros. E faz sílaba penetrando outra letra, que faz palavra penetrando outra sílaba que faz frase penetrando outra palavra. A letra me escapa, mas tudo em mim são seus rastros. Aparece, reaparece, amanhece, entardece, anoitece e depois some. 

A letra me penetra, me satura e me escava e inaugura o teu nome.


Escorro pelas grades do dia.Transbordo o instante. Derramando-me, tudo em mim é desmaio.  Me estancas com as  mãos. E sou eu essa água que te molha a boca.


Em um cardápio de pintura escolho a textura da sua pele, o cheiro dos seus óleos, a lixa dos seus pêlos. Faço o amálgama de todas as cores e pinto seu corpo num espelho: azul ultramar, verde vessie, amarelo cádmio e cola, muita cola. Até que num átimo, a sua imagem foge do espelho, se faz carne, prende-me por trás, ata-me as mãos e faz de mim o seu pincel.


Viro para o lado e vejo o teu rosto. Essa tatuagem na pele de meu pensamento.


Mistérios na lassidão do dia,

teus dedos em pentagrama,

fogo-fátuo soletra e redime

o sinuoso em ângulo-reto

do teu corpo.


Sol, sol-stício, sol-idão, 

Sol-da de corpo, gozo são

Sol, sol-arium, in-sol-ação, 

Sol-ado de pele, injunção

Sól-ido, líquido, sol-ução:


Queimar corpo a corpo no verão!



Não gosto de ser olhada enquanto escrevo. Vigio do mundo a porta entreaberta. Qualquer aproximação me dá um prenúncio de espanto. Quando escrevo tenho o corpo nu entre as mãos e não quero ser pega no ato.


E quando o metafísico pulsa gravemente no físico? E quando o metafísico faz tremer, faz suar, arrepia e sente saudade? E quando o metafísico faz o físico alucinar o beijo na boca do físico ausente a-lu-ci-nan-te-men-te? 

Qual a resposta da filosofia? Os poetas parecem já tê-la dado: "Nunca te vi, sempre te amei". 


Trôpega é a noite e as suas nuvens de pedra. Corre  nas veias um silêncio vermelho espumando o vazio das horas. Réstias da vigília ziguezagueiam a treliça. O suor escorre sobre a face ambígua da lua e contar estrelas é enxugar a polução do céu. 


Hora, então, de caçar a melhor palavra. E a melhor palavra está abraçada ao teu nome. Adormecer. E beijar a boca do sonho.

Fotografia: Nathalie Roze.


Empinando o ventre ela cavalgava os seus dedos de fogo. E chafurdava em seu suor e em seu gosto. Até se olhar no espelho e descobrir uma epifania em seu rosto.


Que seja pra sempre o que não é pra sempre 

mas é sempre luz na margem escura. 

Mais do que achado, o amor pra sempre, 

que seja sempre amado em sua procura!

Tela de Claude Monet "Impressionism, Soleil levant".

Foi rifado o amor. Quem dá mais, quem dá mais? Cem! Duzentos! Duzentos e cinquenta! Quem dá mais, quem dá mais? Uma desilusão! Uma alegria! Um velocípede!  Uma hemoptise! Uma garrucha! Minha flatulência! O esquecimento! Quem dá mais, quem dá mais? Uma galinha! Toda a memória! Uma  vaca! Minha dor nas costas! Quem dá mais, quem dá mais? Um carro! Uma fazenda! Uma casa de campo! Minha cicatriz! Meu primeiro beijo! Quem dá mais, quem dá mais? O que tenho! O que não tenho! Quem dá mais, quem dá mais? Ao final do dia, sem conseguir ser rifado, o amor ficou sozinho, olhos baixos, num canto da sala. Não se sabe se porque pra aquele povo o amor muito valia, ou se de fato, pra eles,  o amor não valia nada.

"Autonomossexualistas, mixoscopófilos, ginecomastos, presbiófilos, zooerastas, sexoestéticos e mulheres disparêunicas". Esse excesso de categorização acaba por assassinar as sexualidades e as práticas amorosas. Não sei do que se trata nenhuma delas. Mas gosto de ficar lendo-as... Sou uma lexicoescopicafilíaca...


Escavo o mais profundo de tua alma até sorver teu hálito.  Esse indecifrável garimpo  teu. Que não o sei e  não o sabendo em tudo o reconheço: na brisa, na aurora, no cravo e na putrefação. Teu hálito é minha neblina, inominável vício vão. Sopra em mim teu hálito e se inaugura meu coração.


A saudade é azulviolácea. Deseja. É  nas tardes que a onda rosácea  pede velas ao cais. A nostalgia é branca, nívea  herbácea,  já desfolhada acácia, velas desiçadas e lácias que nada pedem mais.

Sob o teu olhar, sou ave de arribação, eu sou vertigem. Sou o delírio de um voo sem retorno. Sou o desassossego. Sou a pequena morte. A pena e a sorte. O re(pouso). E a paz.

Semear manhãs, fazendo a colheita das noites, sorver a memória, mastigando o tempo. Cerzir o gozo na intenção das lágrimas, delirar saudade na intenção da música. Raspar a dor e cozinhar desejo, transpirar a morte e engolir a vida. Gritar o amor e transpor  precipícios. Ser pouco e nada, reluzindo tudo. Eriçar tua pele até voar com o sonho. Ser só desejo e flamejar estrelas. Velar o adeus, ressuscitando o beijo. 


Boca a boca com o destino, dizer eu te amo e nos salvar do amor.



Dentre uma miríade de ofertas 

Receber teu corpo, vértice de 

Auroras,

Deitar tua sede sobre o meu

Seio

E aleitar o dia.

A tua voz. A tua voz atravessou o tempo e capotou na barra de meu vestido. E cada palavra tua era um retrato amarelado nas gavetas da cômoda do desejo. A tua respiração ofegante denunciava pouco a pouco o ritmo do que sentias e eu te resgatei de uma memória a mim desconhecida. A tua voz. A tua voz atravessou o tempo e beijou a minha voz. Encontro de línguas saciadas e desdormidas.  A tua voz atravessou o meu vestido e se calou no grito nu de nosso amor silenciado...

Amor entre poetas é o verso do reverso do verso. É soneto sem chave, despudorado, de corpo escancarado. É sextilha sem mantilha. Alexandrinos desatinos. É sexo sáfico. É pá-lavrar arrepio de letras na devassidão do lençol branco da página. Amor entre poetas é iluminescência, é grito surdo na insconsciência. É estar alado na pulsão e sucumbir a realidade à imaginação. Amor entre poetas é não conseguir se desvencilhar do vício de se embriagar de poesia, sonho e ar. Não é amor puro, mas de pura libidinagem, porque sempre se atraca e se devora na (lingua)gem.

Gosto. Gosto quando gritas. Quando gritas meu nome. Porque nesse instante eu sou a única água que te salva. Que te salva do precipício. E que te faz cair. Cair vertiginosamente. Sem complacência. No abismo meu.

Para o amor: Mais amor.

Que o amor é palavra

Que queima

E não se cumpre.

As palavras se roçam, tremem, se arrepiam e se molham. Fazem hiato entre os dedos, boca a boca, ditongos. Pontuam-se no colo com uma exclamação, pernas circunflexas. Cada palavra tem um suor e tem um cheiro. Um dia, vi tirar a roupa, a palavra "namorar". Ela jogou seu  "n" para o "ar", e pequena e nua, gemeu de amor...


A mãe se vestiu com a roupa da filha, sentiu seu cheiro e, lânguida, olhou-se no espelho, como se fosse ela. Do outro lado do oceano, a filha experimentava, como em todos os dias, o seu gozo solitário enquanto o seu telefone, para o seu amante, dava sinal de ocupado.


Só o que te peço é esse imenso nada, um nada em gotas escavando as minhas veias. Um nada em mim com seus pelos irascíveis. Um nada sobre o nada regurgitando em ti a minha palavra que queima. Só o que te peço é um nada pulsante e inteiro, que me penetra de esguelha. E te dou o meu beijo de sangue na tua língua vermelha.


Bebe esse leite que te enreda, quente, fluido, jorrado do amarelazul da tua mulher. É assim que eu me dou, é assim que eu estou: tua leiteira de Vermeer.



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